Por Wenderson Godoi
O 2º Fórum Mineiro de Dança, realizado entre os dias 12 e 14 de novembro na Universidade Federal de Viçosa – UFV, não foi apenas um encontro: foi o momento em que a dança em Minas Gerais se olhou coletivamente e, pela primeira vez em muito tempo, percebeu-se como um sistema. Minas nunca teve um centro único para a dança. Teve polos, espalhados pelo Triângulo, Zona da Mata, Vale do Aço, Jequitinhonha, Norte e Sul. A capital concentrou recursos, mas não concentrou a vida. Quem sustenta a história da dança mineira são grupos comunitários, associações, escolas improvisadas, mestres e mestras que ensinaram com o corpo antes de ensinar com a palavra. Essa descentralização, que antes era vista como fragilidade, agora aparece como força política: Minas é a dança de muitos territórios, e foi exatamente essa pluralidade que fez o Fórum existir.
A história recente revela que, por muito tempo, a dança mineira não teve políticas públicas estruturadas. Viveu de editais esporádicos, de incentivos pontuais, de resistências silenciosas. Em 2015, o deputado Roberto Andrade apresentou na ALMG – Assembleia Legislativa de Minas Gerais o Projeto de Lei 1.478/2015, propondo o Programa Estadual de Fomento à Dança. O campo da dança se mobilizou, o projeto ganhou adesões por todo o Estado, mas a tramitação esfriou. Ficou na gaveta do Legislativo enquanto a classe seguia sobrevivendo sem meios, mas com inteligência coletiva. A partir de 2019, quando entrei no CONSEC-MG como suplente da cadeira de Danças e, mais tarde, como titular, pude somar forças a um caminho que já vinha sendo aberto por nomes fundamentais como Adriana Banana, Alexandre Molina e Regina Amaral, que construíram as primeiras pontes para que a dança tivesse lugar, escuta e força dentro do Conselho. Quando, em 2021, passei a compartilhar a cadeira com Jussara Braga, doutora em artes, professora da UFV, pesquisadora e dançarina, esse percurso coletivo ganhou fôlego renovado: a presença da dança no CONSEC deixou de ser apenas representação e passou a operar como articulação estratégica, sempre sustentada pelo legado de quem veio antes. Jussara e eu transformamos a cadeira em movimento, defendendo pautas específicas, incidindo sobre editais, pressionando pela descentralização. Essa articulação resultou na Política Nacional Aldir Blanc – PNAB: R$ 7.670.000,00 investidos em dança. Pela primeira vez, bailarinos, coreógrafos, ensaiadores, pesquisadores, mestres, professores e instrutores tiveram editais pensados para suas realidades. E, no ciclo 2 previsto para ser lançado nos próximos meses, a vídeodança entrará pela primeira vez na história das políticas públicas mineiras, outro marco que nasceu dessa atuação combinada.
Mas antes mesmo de cruzarmos os portões da UFV, algo já anunciava o que Viçosa seria: no trajeto até o Fórum, fomos de carro como tantos outros fazedores de dança que se deslocaram por quilômetros para que esse encontro acontecesse. No nosso carro, além de mim e Luciano Botelho do Hibridus de Ipatinga, estavam Tati Tassis, de Governador Valadares, e Jane Christian, de Frei Inocêncio. Saímos de Ipatinga rumo aos 203 km até a UFV, mas, para Jane, a estrada era ainda maior: eram mais 138 km até Ipatinga, antes de seguir viagem conosco. E foi nesse deslocamento físico, conversas que iam do cotidiano à política, jantar compartilhado, festa de abertura, caminhadas até os blocos da programação, risos, trocas e silêncios que quatro fazedores de dança de territórios próximos se reconheceram profundamente como rede. A estrada fez o que muitas políticas ainda não fazem: aproximou. Antes de Viçosa começar, já éramos Fórum dentro do carro.
O Fórum, oficialmente, não começou em Viçosa. Começou meses antes, nos pré-fóruns, quatro encontros em cada uma das 13 regiões intermediárias do Estado, onde artistas discutiram gestão, participação social, fomento, formação, economia criativa, trabalho e renda, seguindo os quatro eixos norteadores estabelecidos no documento base do Fórum Mineiro de Dança – FMD. Foi ali que Minas começou a se reconhecer: não como dispersão, mas como rede. A chegada a Viçosa foi apenas a materialização do trabalho subterrâneo de dezenas de articuladores regionais. Viçosa acolheu o encontro com a força da universidade pública. Jussara Braga se tornou a espinha dorsal desse Fórum: ela não apenas inscreveu o projeto no FEC 05/2024 – Cultura da Paz, como mobilizou estudantes, colegas, produtores e técnicos para uma entrega rara, onde cada detalhe respirava zelo, rigor e afeto. A produção local transformou a UFV num território de encontro: acolhimento na chegada, festa de abertura para que os corpos se reconhecessem antes de debater, mesas potentes com pesquisadores, profissionais de políticas culturais e artistas que atravessam o país.
A intensidade da programação das 8h às noites tardias, sem respiro, não foi um exagero, mas um diagnóstico. A dança mineira está cansada de silêncio, invisibilização, fragmentação.
Quando finalmente encontra espaço de escuta, toma-o inteiro. O fato de não ter havido uma apresentação de dança também diz muito sobre o momento que vivemos. Naquele instante, a dança transbordou para o debate e ocupou as mesas como território de urgência, mas a ausência de uma obra no palco deixou um vazio perceptível, não porque o corpo político substituiu o corpo artístico, mas porque o mesmo corpo que pensa também precisa dançar. A dramaturgia estava na fala, a coreografia na articulação coletiva, o acontecimento no pensamento em movimento. Ainda assim, a presença de uma performance teria ampliado o respiro e lembrado, de forma sensível, o porquê de estarmos ali: porque a dança, antes de ser pauta, é presença.
O Fórum, no entanto, encontrou seu ponto mais histórico na mesa de encerramento. A presença do deputado Roberto Andrade, autor da Lei da Dança, não foi um gesto simbólico: foi a oportunidade concreta de retomar uma política estruturante que Minas nunca teve. E foi ali, diante de artistas de todas as regiões do estado, que surgiu um encaminhamento para atualizar, fortalecer e reabrir a tramitação do PL 1.478/2015. A dança mineira saiu de Viçosa com um compromisso político. O Fórum gerou não apenas afeto, rede, encontros e diagnósticos gerou estratégia. E isso significa que Minas Gerais pode finalmente avançar para além dos editais episódicos e construir um programa contínuo de fomento e manutenção.
Este Fórum foi o momento em que a dança mineira deixou de se enxergar como soma de iniciativas e passou a se compreender como sistema. Um sistema que envolve formação universitária e comunitária, centros urbanos e pequenas cidades, memória ancestral e experimentação contemporânea, produção artística e política cultural. Um sistema que precisa existir para além de governos, editais e conjunturas. O Fórum mostrou que a dança mineira pensa e quando pensa, exige que o Estado a acompanhe. Dançar é um modo de pensar. E, em Viçosa, pensar foi um modo de dançar.
Ao transformar interioridade em centro, território em pauta, corpo em política e articulação em futuro, o 2º Fórum Mineiro de Dança deixou claro que “a dança em Minas não está pedindo espaço: está construindo o seu”. Esse não é um gesto de reinvindicação passiva, é um movimento ativo. E, como os movimentos autênticos, quando começam, não voltam atrás. Minas dançou sua própria política. E a partir daqui, nada mais poderá ser como antes.
Em meio a esse processo, a dança ouviu no silêncio das redes sociais uma crítica que muitas vezes lhe foi dirigida: “vocês não mostram demanda”, disseram. Pois bem: estamos mostrando. Mostrando corpos que circulam, que formam, que ensaiam, que pesquisam, que viajam, que se articulam em 13 regiões, que constroem redes. A demanda não está latente, ela movimenta. E é nesse movimento que a dança exige que o Estado corresponda. O Fórum não encerrou-se em Viçosa, partiu de lá um compromisso legislativo, um compromisso público de retomar o PL 1.478/2015, de fazer da lei não um sonho, mas uma ferramenta real de fomento, manutenção e articulação para toda a dança mineira. É a dança dizendo: “Nós existimos, nós somos muitos, e vamos além”. Porque fazer política é dançar. E fazer dança é governar o corpo, o território e o futuro.
Fotos: @samuelcp.fotografia





