Crítica de “Remixshake” por Clóvis Domingos

Compor a roupa do encontro num tecido afetivo: notas brincantes a partir de Remixshake do Coletivo Aberto de Teatro

– por Clóvis Domingos¹ –

Embarcação.
Navegações.
Brincadeiras.
Infâncias.

Remixshake, a nova criação do Coletivo Aberto, é um experimento cênico-poético feito para as redes virtuais
que ao juntar materiais
pode ampliar canais
lúdicos e sensoriais
e colocar as imagens e memórias
para dançar e criar histórias.

Parece desenho animado
programa de televisão
teatro de fantoches
show de música
arte de dobradura
revista de variedades
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1 Menino grande, alto e magrinho que tem fome o dia inteiro: gosta de letras, teatro, livro de poesia e ouvir música. Adora brincar na rua. Gosta de fingir que é o Cavaleiro Azul da peça A Viagem de um Barquinho de Papel de Sílvia Orthof. Tem medo de escuro e de solidão e gosta de comer bichinhos coloridos em forma de sopa de macarrão.

e aula de filosofia e filme de ficção científica e tudo aquilo que nossa imaginação
puder alcançar
para o encanto não naufragar…

E…… e…. e…. e: Multiplicidades.

Remixshake tem sabor de milk-shake: mistura linguagens, agita e acalma, faz tremer, diverte, convida a pensar.
Batida. Batente. Bote em meio ao mar.
Esse criançar que faz de uma coisa outra coisa e mais outras coisas, juntando, derivando, pulsão errante.
Isso de remixar e recriar.
Expõe o processo que também é resultado: papel, barco, movimento, políticas do olhar, aventura, construção:
As mãos transformam as matérias do mundo.
Voltam Dom Quixote e Sancho Pança em suas peripécias na quarentena. O cavaleiro analógico agora em versão tecnológica.

Nessa lira
Quixote delira
Sancho respira
Sonho e realidade
Mentira e verdade
Remixshake é pra toda idade.

Retorna em minha mente uma cena do espetáculo que assisti ao vivo ano passado no Grande Teatro do Sesc Palladium em Belo Horizonte: Quixote confundindo chapéu com penico e fazendo a gente lembrar de nossa humanidade.
Em Remixshake tem Clarice Lispector (autora também presente no média-metragem A Quinta História produzido pelo grupo durante o período de isolamento físico) e suas perguntas que não pedem resposta, mas aposta.
O que há de saúde em cultivar a dúvida e o mistério?
Tem a monstra que não causa mais medo em seu medo de fracassar.
De forma delicada surgem temas que encaram a infância como tempo de susto, sagacidade e rebeldia, sustentando o risco daquilo que ousa sempre indagar, desestabilizar, provocar abalos no solo de um mundo dito apaziguado, civilizado e organizado.
Muito cuidado: as crianças são seres perigosos!
E aí reside certo tipo de feitiço.
O Coletivo Aberto parece investir nestas Poéticas da Anti-Esfinge: “não me decifre, não me devore, não me enclausure, conviva com os enigmas, abrace o inusitado”.
Uma característica marcante no repertório dos trabalhos do grupo é a desmontagem tanto presente na linguagem cênica (o dispositivo de quebrar a narrativa e a ficção para assim apresentar um ponto de vista, e paralelo a isso, a exibição dos modos de fabricação dos jogos no palco), quanto nas temáticas escolhidas: em Procurando Firme se desmontam o poder e o machismo, já em As Aventuras do Super-Quixote se desmoronam os edifícios da ignorância e a supremacia da racionalidade numa sociedade utilitária (“São tempos difíceis para os sonhadores”) e na performance Monstrxs se desmantelam os mecanismos de dominação do medo. Assim temos uma princesa que é mais plebeia e criança comum, um cavaleiro que na verdade é um anti-herói desastrado e uma monstra com crises existenciais em seu devir humana.

Diversas referências (literárias, musicais, plásticas e da cultura pop) se desmancham e se recombinam para se recomporem em um novo arranjo: Remixshake.
Nesse vídeo-experimento, a edição se equilibra entre agilidade e pausa, cortes rápidos e momentos mais dilatados.
Somos astronautas e ao mesmo tempo as miudezas deste infinito Universo.
Somos convocados à responsabilidade de cuidar da “pálida bolinha azul”.
Cenas, fragmentos e remontagens
de trabalhos do repertório do Coletivo Aberto
Criam novas paisagens
de um futuro incerto!

Remixshake pode ser quebra-cabeça ou dominó.
A gente não se sente mais só.

Brinquedo com puro colorido.
Parece camaleão que muda de cor o tempo todo.
Teatro pela internet? Por que não?
O que conta é o desejo de encontro e de comunicação.
O que muda é a roupa.
“Com que roupa eu vou
À aventura que você me convidou”?

Penso num trecho do livro Roupa de camaleão:

“Que cor pôr em meu corpo
Compondo a roupa do encontro?
Encontro todas as cores do mundo
E, em um segundo, estou pronto”.

O teatro é um camaleão esperto.
Que bom ver o Coletivo Aberto
Tão desperto!

O que conta é o desejo de continuar:

“Não quero uma cor qualquer.
Bem me queira! Pois vou estampado!
Tampado de cores vibrantes,
Antes colorido que apagado”² .

Assim escuto o teatro se afirmando entusiasmado.
Não aceita apagar a chama da fantasia:
Transforma “pouco em palco”³
Tristeza em alegria.

Essa roupa não tem problema de sujar
Pode até rasgar.

“Mesmo tendo errado eu sempre quis acertar”4

O teatro não para de remar….

Será que nosso barquinho ainda vai chegar no mar?
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2 Roupa de camaleão. Obra poética de André Vargas. Editora Escrita Fina, 2018.
3 Expressão presente na letra da canção Até Chegar no Mar da Trupe Chá de Boldo e que está na trilha sonora do vídeo.
4 Trecho da canção Terra Plana (Fernanda Takai e John Ulhoa) presente na trilha sonora do experimento.

No próximo dia 27 de setembro, sexta-feira, o Cineclube LGBT+ do Espaço Hibridus Ponto de Cultura apresenta ao público de Ipatinga o curta-metragem “Gorete Canivete”.

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