Quando o corpo público dança — notas sobre o Festival de Diálogo em Ipatinga

Foto: Rodrigo Zeferino

O Festival de Diálogo – Diversidade e Economia Criativa, realizado pela produtora Priscila de Paula neste outubro no Parque Ipanema, não é apenas um evento cultural. É, antes de tudo, um ensaio vivo sobre o que a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) começa a desenhar no país: a possibilidade de que a cultura deixe de ser exceção e volte a ser presença.

Em um sábado ensolarado, famílias inteiras ocuparam o Parque Ipanema, corpos em movimento, crianças com pipoca nas mãos, idosos observando, jovens dançando. A cena é simples, mas seu significado é profundo. O parque espaço público por excelência, se transforma em corpo político, em território de partilha. E é nesse gesto que o festival se torna experiência e crítica: o espaço público deixa de ser cenário e volta a ser palco da vida comum.

Como diria Helena Katz, “dançar é pensar com o corpo o mundo que o move”. E o mundo que move o Festival de Diálogo é o da reconstrução das políticas culturais de base comunitária, depois de anos de silenciamento e desmonte. A PNAB, ao possibilitar que Ipatinga realize um evento assim, revela o poder da política pública como coreógrafa invisível: ela não dança, mas faz dançar. Cada forró conduzido por André Galá, cada ginga do Quilombo do Queimado, cada brincadeira do Palhaço Dândi, cada passo invertido do B-boy Luizim são, também, passos da política.

Periféricos, negros, populares: esses corpos quase nunca convocados pelo palco institucional reconstroem sua legitimidade quando tocam o chão do Parque. No hip hop de Wesley Luiz Costa Ribeiro (B-boy Luizim) não há “número”, há enunciação. O breaking que ele e seus parceiros: Washington Nikolas, Islander Lopes Silva e Alberto Sertão Coffran, convocam com top rock, footwork, power moves e freezes reorganiza o espaço como cypher, roda de escuta mútua em que cada entrada responde à anterior e prepara a próxima. É coreopolítica: o corpo fala onde antes só se passava. Ao ocupar o centro da roda, o homem periférico desloca códigos de masculinidade que o ensinaram a conter afeto e risco; aqui, ele transforma força em técnica, impacto em ritmo, sobrevivência em estilo (popping, locking, groove). Não “se apresenta”: se afirma.

Mas Luizim vai além da performance: ele se autodeclara “Historiador do Hip Hop do VDA”, trazendo no gesto do dançarino o compromisso com as narrativas de quem veio antes e com quem virá depois. Esse gesto de memória amplia a enunciação: o corpo não dança em vácuo, ele encarna uma genealogia e proclama continuidade. O grupo que compõe a roda faz da dança uma pedagogia da presença, um chamado à coletividade e à herança. A roda revira o olhar quem vê também é visto e o parque vira estúdio aberto em que a cidade aprende outra gramática de corpo.
O giro do break, que rasga o plano vertical e deita o corpo no chão da cidade, é mais que virtuosismo: é assinatura territorial. Escreve no asfalto que a periferia não é margem, é matriz; que o masculino não é dureza, é escuta em movimento; que cultura urbana não é apêndice, é método de existir. Cada queda controlada, cada pausa suspensa, cada retorno ao beat redesenha o mapa simbólico de Ipatinga do centro para fora, e de fora para o centro.

O festival, ao propor o diálogo entre as culturas populares e a economia criativa, devolve à palavra “economia” seu sentido original, o de gerir a casa comum. Aqui, a economia é feita de redes afetivas, de trocas simbólicas, de cooperação. O forró, o cortejo teatral, a capoeira, o hip hop, a palhaçaria: tudo se mistura na mesma partitura, onde a diversidade não é conceito, mas prática.

O Parque Ipanema, que tantas vezes é lembrado apenas como cartão-postal, se torna palco do que o urbanista Henri Lefebvre chamaria de “direito à cidade”: o direito de produzir o espaço com o corpo e com o encontro. É o corpo social se reconhecendo na paisagem.

O Festival de Diálogo é um acontecimento de política cultural não apenas porque é financiado pela PNAB, mas porque encarna sua vocação: a de redistribuir o poder de fazer cultura, recolocando a comunidade como sujeito da criação.

E quando, nos dias seguintes, as ações formativas ocupam a Biblioteca Zumbi dos Palmares com Morrison Deoli, Carlos Passos, Bruno Minafra e Hyuri Luna e eu (Wenderson Godoi), a experiência se expande: o gesto se transforma em pensamento. É a dança da política pública da rua ao livro, do corpo ao discurso, do vivido ao pensado.
O festival nos lembra que o diálogo é um verbo coletivo, e que a cultura é uma forma de escuta.

No chão do Parque Ipanema, dançar é também uma forma de governar a cidade, não pelo controle, mas pelo convite à convivência.

Wenderson Godoi