Quando o Território Dança, a Fronteira Respira

Por Wenderson Godoi

Quando Verusya nos indicou para escrever sobre o Hibridus para a Revista Buli (https://www.conservatoriodetatui.org.br/wp-content/uploads/2024/02/BULI-no-03-Revista-de-Artes-Cenicas_.pdf), aprendemos que escrever também é uma forma de dançar: desloca, afeta, cria território.

Agora, diante da 13ª edição do Festival de Dança de Itacaré, entendemos que precisávamos escrever novamente, não por convite, mas por necessidade. Há experiências que não cabem no silêncio.

Há festivais que se organizam em planilhas; o de Itacaré se organiza em territórios. E isso muda tudo.

A 13ª edição escolheu o tema Territórios Fronteiriços, Corpos Fronteiriços, mas Itacaré já praticava essa ideia antes de nomeá-la. Aqui, onde a Mata Atlântica encosta no mar e o mar devolve histórias que o vento espalha, a fronteira nunca foi linha: é zona de contato.

A curadoria de Verusya Correia reafirma isso ao trazer a Temporada França–Brasil 2025 para dialogar com o Nordeste. Mas não a França que imaginamos quando pensamos “Europa”. A França que chega a Itacaré tem pele de Guadalupe, passos da Costa do Marfim, ritmo de Mali, diálogos com Portugal. É a França negra que resgata suas origens coloniais para falar do futuro. Uma França que não se exibe: se reconhece.

A estreia de Ideia de Festa / Une Idée de Fête, colaboração entre Abdulaye Konaté e Verusya Correia, encarna esse gesto: um trabalho que atravessa continentes sem pedir permissão às fronteiras formais. Nesse festival, o corpo dança o que os mapas evitam.

Mas antes de qualquer espetáculo, Itacaré nos lembra que o corpo precisa de convivência. É uma coreografia sui generis: artistas hospedados em pousadas pequenas, caminhando a pé pelas ruas apertadas, chegando ao Centro Cultural Porto de Trás sem vans, sem o isolamento confortável que tantos festivais constroem para seus convidados. Aqui, ninguém é tornado celebridade, todos são devolvidos ao chão. O deslocamento é experiência estética.

Esse caminhar é também uma tomada de posição num território pressionado pela turistificação. Em uma cidade onde a especulação imobiliária espreita cada rua do quilombo urbano de Porto de Trás, fazer com que artistas atravessem o bairro a pé, respirando sua textura real, é deslocar o eixo: o festival não se emparelha ao turismo; resiste a ele.
Não transforma o território em vitrine: devolve-lhe centralidade.

O caminho até o Centro Cultural Porto de Trás é quase um prólogo.

Atravessam-se ruas que carregam o cheiro do mar, vozes de crianças, bancos de praça que já viram histórias demais para serem esquecidas. No palco, sempre há obras; mas é fora dele que acontece a ideia mais radical deste festival: a dança como forma de pertencer.

No Centro Cultural Porto de Trás, este que é, ele mesmo, uma grande aula de ancestralidade, resistência e invenção, a plateia não assiste: ela respira junto. As crianças chegam antes, ocupam tudo, vibram como se entendessem, desde sempre, que aquele espaço é delas. E é. A lotação é tamanha que quem chega depois às vezes precisa voltar; há algo bonito em saber que o excesso aqui não é de glamour, mas de comunidade.

É a dança como mobilização.

Dança como quintal.

Dança como modo de existir na fronteira entre o dentro e o fora, o local e o estrangeiro, o cotidiano e o extraordinário.

Nesta edição, um dos momentos mais intensos foi assistir a Ai ai ai, de Marcelo Evelin da Demolition Incorporada, uma obra de 1995, que completou 30 anos e foi apresentada tal e qual, sem remendos, sem rejuvenescimentos artificiais. Ver esse espetáculo hoje é como tocar um nervo exposto da história da dança brasileira. É participar, ao vivo, daquilo que moldou uma geração inteira.

E há uma beleza política nisso: jovens artistas negros de Porto de Trás, que muitas vezes são empurrados para fora dos circuitos formais, puderam ver ali um marco da dança contemporânea brasileira, não como passado, mas como presença. Como se o tempo, por algumas horas, deixasse de ser linha para virar espiral.

Na mesma noite, a performance We Who Do Not Belong, de Soko Jena, irrompeu no espaço com uma força que não permite distração. Ali, a travessia dos imigrantes pelo Mediterrâneo não era metáfora: era carne. Era respiração curta. Era a urgência de existir em um mundo que insiste em negar pertencimento. E foi profundamente simbólico que esse trabalho, sobre deslocamento e fronteiras violentas, encontrasse acolhimento justamente num quilombo urbano.

Esses dois trabalhos, vistos lado a lado, produziram uma dobra rara: um passado que ainda pulsa e um presente que ainda sangra.

Falar desta edição sem falar da nossa própria história com Itacaré seria romper o fio que nos costura a este território.

Em 2015, Joubert Arrais abriu a primeira porta quando convidou Luciano Botelho, do Hibridus, para operar o som de seu espetáculo “Eu danço Sambaroxé”. Ali, descobrimos que Itacaré não era apenas um destino turístico: era um lugar onde a dança respirava de outro jeito.

Voltamos em 2016, não dentro do festival, mas no programa “A Dança Ocupa o Porto”, com o espetáculo “Da Carne ao Corte” e oficinas de produção cultural, e descobrimos que o Porto de Trás acolhe trabalhos como quem acolhe parentes.

Em 2017, retornamos já no festival, com “Solos Hibridus”.

Em 2019, com o infantil “Coisa é Tudo”, apresentado em Ilhéus e Itacaré.

Agora, em 2025, levamos o videodança Aqui, um trabalho com direção de Léo Coessens, que conversa com o território justamente porque se permite escutá-lo e a receptividade do público foi daquelas que dizem mais do que qualquer mediação verbal. O vídeo não foi exibido sozinho: chegou acompanhado de Aqui – um processo, um minidocumentário que revela as camadas de criação, tornando visível o que normalmente permanece escondido no gesto. Exibir os dois juntos produziu uma espécie de dobra: obra e processo se olhando, obra e artista se atravessando, obra e público se reconhecendo. A comunidade recebeu o videodança com atenção daquelas presenças que não são silêncio, mas escuta. Em Porto de Trás, o minidoc funcionou como uma mediação encarnada, uma conversa entre quem cria, quem vê e quem vive o território que atravessa a obra. Não era apenas exibição: era devolução. O nosso percurso também tem fronteiras. E, como as do festival, elas nunca foram muro.

A 13ª edição mostrou algo precioso: a dança não precisa de metáfora para ser política.

Em Itacaré, basta abrir a porta do Centro Cultural para perceber que a política está na própria redistribuição do sensível nas crianças negras que ocupam o lugar, nos artistas estrangeiros que chegam caminhando, nos corpos que performam suas histórias sem pedir autorização ao cânone.

Verusya Correia constrói uma curadoria que é, antes de tudo, um modo de pensar corpo no território. Em Porto de Trás, onde as fronteiras foram historicamente impostas contra aqueles que hoje ocupam o centro do festival, a dança não é entretenimento: é restituição.

O festival não leva a arte à comunidade; é a comunidade que molda o festival.

E o encerramento não poderia ter vindo de outro lugar senão dali: da Roda de Samba de Ayê, feita pela própria comunidade de Porto de Trás, não um “show”, mas um gesto ancestral. Ao final do festival, quando os tambores se alinham com as vozes do bairro e o samba se torna uma memória que toca no presente, é impossível separar arte e território. Samba de Ayê não é entretenimento: é rito. É roda que guarda segredos do quilombo urbano, é canto de pertencimento, é corpo coletivo que se afirma diante de uma cidade que convive diariamente com a pressão do turismo e da gentrificação. Quando a roda começa, o festival devolve a cena a quem ela sempre pertenceu: ao povo que sustenta, no cotidiano, o chão onde tudo isso acontece.
Itacaré não oferece respostas. Oferece convivência.

E por isso, ao caminhar de volta pelas ruas estreitas de Porto de Trás, é o corpo que percebe que algo se deslocou não fora, mas dentro. A fronteira, agora, não separa: orienta.

Não é o fim da noite.

É o começo de uma outra forma de estar no mundo, uma forma em que o corpo entende que só é possível dançar o futuro quando o presente é partilhado.

Fotos: Bruno Morais.