Ancestralidades em Movimento

Há tempos, meu querido amigo Léo Coessens, do Coletivo Aberto de Teatro, vem me provocando a mergulhar no território da escrita sobre a produção cultural local. Sempre fui escapando desse chamado, encontrando outras rotas, talvez por medo ou por achar que esse lugar não era o meu. Mas, com a realização da 7ª edição do Mercado Livre na Dança, senti que era hora de transformar essas vivências em palavras. Não sou um crítico, mas sou um defensor apaixonado pelas artes e pela cultura, inspirado pelo nosso querido e saudoso Marcelo Castilho Avellar, que com suas oficinas de pensamento crítico em arte em nosso Espaço Hibridus Ponto de Cultura, nos orientou a olhar o mundo com mais profundidade e sensibilidade. Agora, me sinto movido por essa mesma energia.

Vamos lá então, Carlos Passos, com seu olhar afiado e intimamente conectado à periferia (já que é de lá que ele vem, com sua trajetória pela Flux Cia. de Dança com o Lonadelonga, anos de projeto Fica Vivo, Centro Socioeducativo, Casa de Semiliberdade, entre outros), conseguiu entrelaçar territórios, memórias e corpos em uma curadoria que respira ancestralidade. Seu trabalho vai além de uma simples organização de espetáculos. Carlos traz consigo a densidade do que significa existir e resistir nas margens, onde a criação artística é uma forma de sobrevivência e de dar voz ao que muitas vezes é silenciado. Seu olhar curatorial não foi apenas uma escolha estética, foi uma visão de mundo, uma postura política que reconhece a importância de cada território e suas histórias, abraçando a diversidade com a mesma força com que celebra a memória escolhendo obras artísticas de países iberoamericanos com apoio do Iberescena (Fondo de Ayudas Para Las Artes Escênicas Iberoamericanas e Funarte (Fundação Nacional de Artes).

O 7º Mercado Livre na Dança foi um testemunho disso. Cada trabalho parecia carregar nas veias a pulsação de um lugar, de um passado, de uma vivência que se reflete no movimento. A peça “ADEÓ”, do Hibridus de Ipatinga, representando o Brasil, apresentada no Teatro do Centro Cultural Usiminas, em agosto, como uma celebração viva de uma história de 20 anos do grupo, onde os chãos que os artistas pisaram ao longo dessa jornada ecoavam em cada gesto. A ancestralidade não estava apenas em cena; ela respirava junto ao público, tornando visível o que tantas vezes permanece escondido sob as superfícies. O convite à escuta, à conexão com o que precede o agora, fez do trabalho uma profunda homenagem não apenas à trajetória do Hibridus, mas também ao território afro-indígena que é Ipatinga.

Marina Sarmiento da Argentina, com “Mis Viajes: Memorias Coreográficas”, ofereceu ao público, no Espaço Hibridus Ponto de Cultura, esse final de semana uma jornada íntima, uma peregrinação onde objetos, memórias e o próprio corpo criaram um diálogo poderoso entre o que foi e o que ainda está por ser descoberto. Sua dança era mais que movimento; era uma paisagem interior transbordando de afetos, onde cada gesto era uma lembrança transmutada em arte. Marina mostrou que o corpo carrega arquivos invisíveis que, quando despertados, revelam camadas de existência impossíveis de se expressar apenas com palavras.

Tamia Guayasamin do Equador, com “Una cosa así – ensayo sobre la identidad en movimiento”, nos guiou no Parque Ipanema, na tarde deste domingo, por um ensaio performativo sobre a identidade, onde o corpo se movia entre histórias que narram as origens, as misturas, os traços deixados pelo tempo e pelo espaço. Uma pena que a ausência do silêncio do entorno não nos proporcionou uma imersão maior. Essa coesão, enfrentou desafios contextuais que impactaram a experiência do público em certos momentos, cuja delicada narrativa foi perturbada por ruídos externos, impedindo o mergulho pleno na ancestralidade proposta pela performer Tamia Guayasamin.

Em seguida aconteceu a Roda de Conversa “Arte e Periferia” com Mati Lima, realizada no Galpão 01 do Parque Ipanema. Uma potente reflexão sobre os desafios e caminhos das produções culturais periféricas. Em um domingo à tarde, ao ar livre, o parque se tornou o palco ideal para debater a mobilidade cultural em contextos urbanos e o direito à cidade. A conversa trouxe à tona as políticas públicas necessárias para fortalecer esses territórios, enfatizando suas potências e resiliência. A curadoria de Carlos Passos mostrou, mais uma vez, sensibilidade ao unir memória, movimento e território, criando uma ponte direta com a vivência periférica, que é o centro de sua própria trajetória.

No entanto, não posso deixar de questionar: onde estavam os fazedores de cultura da própria periferia? Em uma roda de conversa que ressoava justamente suas vozes e demandas, a ausência deles ecoava com força. Em uma tarde de domingo, num espaço público acessível, esta ausência revela uma lacuna que precisamos enfrentar. A cultura periférica precisa estar presente não apenas na criação, mas também no debate e na escuta. E essa desconexão nos leva a refletir sobre os obstáculos que ainda existem para aproximar os próprios protagonistas dessas discussões tão fundamentais.

Por fim, é preciso falar também dos artistas das artes cênicas, das artes do corpo, da nossa região, em especial os artistas de dança da própria cidade. Ipatinga, que já foi um epicentro de grandes eventos de dança no Brasil, hoje carece da presença daqueles que fazem dessa arte sua vida. A ausência dos fazedores de dança na platéia das apresentações não é apenas uma lacuna, é um sintoma de um distanciamento que precisa ser curado. A dança, como forma de expressão, pede a cumplicidade daqueles que a criam. Não é suficiente apenas produzir; é necessário também estar presente, apoiar, assistir, viver a dança em todas as suas formas. A responsabilidade por essa ausência é de todas, todes e todos àqueles que deveriam estar ao lado, fortalecendo a cena local.

O que Carlos Passos nos ofereceu foi mais que uma mostra; foi um chamado. Um chamado para escutarmos o corpo, o território, a memória, e para estarmos juntas, juntes e juntos, de mãos dadas, na construção de uma cena que só será forte se for feita por todos, todes e todas.

Wenderson Godoi
Artista da Dança
Espaço Hibridus Ponto de Cultura