por Wenderson Godoi
Foi em Milho Verde, entre montanhas antigas e ventos que parecem guardar vozes, que o projeto Conexões Culturais – Tecendo Redes Locais se fez corpo e território. Ali, onde o tempo desacelera e o horizonte se abre em curvas de pedra e silêncio, fazer cultura ganhou a textura de um gesto ancestral.
Sob a coordenação de Cláudio Letro e a produção cuidadosa de Laurinha, Lívia e Kia, o encontro reuniu fazedores e fazedoras de cultura de diferentes cidades da região de Diamantina, um mosaico de sotaques, cores, memórias e lutas.
Mais que um fórum, foi um aquilombamento contemporâneo: um espaço político e simbólico onde corpos, histórias e ancestralidades se cruzaram para produzir pensamento, movimento e futuro.
O termo aquilombamento, longe de ser apenas metáfora, tem sido reivindicado por intelectuais e artistas negras e negros como prática de resistência e de invenção do comum. Aquilombar-se é criar refúgio e reexistência. É reunir-se para cuidar, para partilhar, para sonhar. É construir espaço de futuro no agora, como fizeram aquelas e aqueles que, vindos de Serra Azul, Andrequicé, Serro, Carbonita, Diamantina, Couto de Magalhães, Santo Antônio do Itambé, Alvorada de Minas, São Gonçalo do Rio Preto e Datas, chegaram trazendo seus territórios, suas vozes e seus modos de fazer cultura.
A abertura, na sexta-feira, foi um gesto de ritual e acolhimento. Mestre Fábio, artesão e mestre de marujada, recebeu o grupo entre histórias de seu pai, histórias de esteiras e balaios trançados, matéria viva do que é tramar cultura: unir fibras, atravessar tempos, como diria mestre Fábio: “Morou na conversa?” Laura, presidente do Instituto Milho Verde, deu as boas-vindas lembrando que cultura se faz com vínculos e não com hierarquias. Sérgio Bianzin e Sofia Luz preencheram a noite com música, instaurando o primeiro ritmo do encontro, o do pertencimento.
No sábado pela manhã, Luciano e eu conduzimos uma dinâmica corporal sobre redes. O corpo foi o primeiro território a ser cartografado. Começamos friccionando as mãos, despertando o calor que pulsa na pele, o gesto simples de gerar energia e presença. Depois, com o rosto coberto pelas próprias mãos, experimentamos a escuridão e o respiro. Aos poucos, abrimos os dedos diante dos olhos, deixando a luz infiltrar-se pelas frestas. Ver o mundo pelas brechas tornou-se exercício de percepção: reconhecer que o olhar também se tece em rede.
Seguimos caminhando pelo espaço, triangulando com outras pessoas, criando conexões móveis, elásticas, que se faziam e desfaziam a cada passo. Havia quem estivesse perto, quem estivesse longe, mas todos compartilhavam o mesmo campo de atenção. A rede se tornava visível no deslocamento dos corpos, na escuta do ritmo coletivo. O exercício culminou em uma coreografia em roda, o “Minuê”: para que o grupo permanecesse de pé, era preciso que cada um se apoiasse no outro. Só assim sustentando e sendo sustentado o coletivo encontrava equilíbrio.
Aquela prática, simples e profunda, tornou-se metáfora viva do que o projeto propunha: reconhecer-se como nó e fluxo, como ponto de sustentação de um tecido maior. Em seguida, cada participante apresentou o panorama cultural de seu município, revelando realidades complexas e ricas em diversidade. O exercício coletivo da FOFA (Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças) encerrou o dia como dispositivo crítico e propositivo, um modo de pensar politicamente a partir da escuta, não da disputa.
A partir dele, o grupo chegou a consensos que apontam caminhos concretos para o fortalecimento da região: 1) a necessidade de formação continuada sobre cultura e política cultural; 2) o compromisso de atuar na implementação dos sistemas municipais de cultura nos treze municípios representados; 3) o desejo de estruturar um Fórum Permanente Regional de Cultura; e 4) o reconhecimento da importância de aprofundar o conhecimento sobre o patrimônio cultural da região. Essas diretrizes nasceram da própria rede — gestadas na escuta, forjadas no encontro — e desenham horizontes de continuidade que ultrapassam o tempo do fórum.
A noite livre levou boa parte do grupo ao bar Armazém, onde uma festa de Halloween se transformou em celebração do encontro. Entre fantasias, gargalhadas e danças improvisadas, o que se instaurou ali foi mais do que descontração: foi a reafirmação da alegria como gesto político. A festa, longe de ser pausa, foi continuidade, o corpo dizendo que resistir também é festejar.
Naquela noite, as fronteiras entre o formal e o afetivo se dissolveram. O riso, o canto e o abraço tornaram-se extensões do trabalho coletivo vivido nos dias anteriores. A celebração não foi apenas um desfecho, mas parte do processo: momento em que os laços se refazem e a confiança se renova. No Armazém, entre a música e o improviso, o grupo reafirmou o sentido maior do projeto, que construir redes é também afirmar a vida.
O domingo amanheceu com apresentações dos projetos locais, evidenciando o quanto o fórum gerou circulação de ideias, fortalecimento de identidades e visibilidade para práticas culturais que normalmente se dão à margem dos grandes centros. A hospedagem compartilhada na Pousada Bituca e as refeições no Restaurante Bantú completaram o gesto de comunidade: comer junto, acordar junto, conversar sem mediações, pequenos atos que, somados, produzem o sentido profundo de “estar em rede”.
Mais do que um fórum, o encontro foi um laboratório vivo de Cultura da Paz, realizado com recursos do Fundo Estadual de Cultura (FEC), Edital FEC 05/2024, que propôs uma experimentação de novas formas de gestão e convivência. Em tempos de precarização e isolamento, foi um ato político insistir na presença, no cuidado e na escuta.
Cláudio Letro, a quem muitos chamam carinhosamente de Claudinho, tem uma trajetória entrelaçada à história do Hibridus e à minha própria. Desde 1999, quando ainda integrava o GRUCON – Grupo de União e Consciência Negra, ele foi parceiro de invenções, ajudou a criar o Encontr’Arte…Negro e o ENARTCi – Encontro de Dança Contemporânea de Ipatinga, e foi quem nomeou o Hibridus, percebendo em nós o que já era essência: a mistura, o atravessamento, o híbrido como identidade e método. Durante a pandemia, escrevemos juntos o projeto de seu primeiro livro, Terreno Baldio, pela Lei Aldir Blanc, e, no ano passado, retomamos esse fio com o Conexões Culturais, agora costurado em rede de afetos.
Luciano e eu nunca havíamos estado em Milho Verde. Todos os nossos amigos falavam da beleza do lugar, descreviam sua paisagem como um refúgio entre montanhas, e parecia que, de alguma forma, já o conhecíamos pelas palavras deles. Mas fomos pela primeira vez movidos pelo trabalho, fomos por Claudinho. E talvez por isso a chegada tenha tido um sentido ainda mais profundo: não era turismo, era travessia afetiva, reencontro com uma história que nos antecede.
O que se viveu em Milho Verde foi uma atualização desse mesmo gesto fundador: reconhecer-se no outro. A cultura mineira, com sua delicadeza e profundidade, se fez corpo coletivo. O encontro foi aquilombamento, foi aprendizagem, foi comunhão. Uma prática de Cultura da Paz que se realiza não pela ausência de conflito, mas pela presença do diálogo, pela escuta atenta e pela partilha que transforma diferença em vínculo.
O corpo é sempre um tradutor da experiência e aquele fim de semana foi tradução viva de uma política do corpo, onde dançar, pensar e existir se tornaram o mesmo gesto. Em Milho Verde, os corpos se reconheceram como território de memória e de futuro, como mapa pulsante de uma coletividade que insiste em permanecer.
Cada toque, cada fala, cada canto, cada olhar sustentado foi também um ato de resistência: um lembrete de que a cultura é o que nos mantém respirando quando tudo o mais tenta nos calar.
O corpo, em roda, foi ponte e abrigo. Teceu redes, e foi tecido por elas.
E quando tudo se encerrou, o que restou não foi o fim, mas um chamado, o de continuar em movimento, porque aquilombar-se é também manter o corpo em dança, é transformar o encontro em permanência.


