Arquivar o Nada: a cidade como cena em C.A.B.Ô.

por Wenderson Godoi

A tarde cai sobre o Parque Ipanema e o cotidiano de Ipatinga se vê atravessado por uma aparição. Uma máquina de sucata, teclados, fios, cabos, cones de trânsito, luzes e fumaça avança lentamente. À frente, um palhaço de expressão carrancuda, olhar duro que contrasta com o jogo silencioso da cena. Nenhuma palavra, só o ranger metálico do artefato e o rumor curioso do público. A cena descola a paisagem de seu uso habitual: não é mais parque, é território de intervenção.

Toda arte que se ancora no movimento não se define pelo passo ou pela técnica, mas pela maneira como o corpo pensa e reconfigura o espaço que habita. Em “C.A.B.Ô.”, essa concepção se materializa quando Pedro Barroso, ator, professor e palhaço Dândi, percorre o parque com sua máquina, instaurando um percurso de errância que transforma a caminhada em gesto cênico. Sob a direção de Léo Coessens, a performance dispensa a ideia de palco e borra as fronteiras entre artista e transeunte: é a própria cidade que se converte em dramaturgia, onde cada ruído, olhar e desvio compõem a narrativa em tempo real.

A proposta dialoga com a tradição das intervenções urbanas: efêmeras, site-specific, capazes de friccionar o fluxo cotidiano. Quem caminha, corre ou pedala é convocado a testemunhar um arquivo que se faz diante de seus olhos e ouvidos. Perguntas brotam: “Ele vai começar que horas?”, “É teatro?”, “Agora ele vai falar?”. O estranhamento é matéria cênica; a obra existe no atrito entre expectativa e não-acontecimento.

Mas é sobretudo a palhaçaria que sustenta o dispositivo. Dândi não é o palhaço do riso fácil; inscreve-se na linhagem do clown contemporâneo, que expõe a falha como potência e transforma o ridículo em pensamento. O nariz vermelho, mínimo de máscara, amplifica essa vulnerabilidade: nele, tudo é presença e risco. Ainda assim, a fisicalidade do trabalho se contém. Falta-lhe a densidade do corpo inteiro, o peso do chão, a vibração que faz de cada gesto uma necessidade. O clown vive de um estado aceso, capaz de converter o mínimo movimento em acontecimento. Aqui, a quietude, embora crie tensão e mantenha a plateia alerta, carece de maior respiração corporal para que a suspensão se torne vertigem.

A máquina que o acompanha não é adereço; é organismo ampliado, criatura de cabos e fumaça que respira com o palhaço. Ela chia, apita, solta música e vapor adocicado, metabolizando cada encontro. Em tempos de excesso de dados, a Central de Arquivamento Bruto Ômega surge como paródia e crítica, expondo a compulsão de registrar tudo. Dândi, palhaço-arquivista, torna-se um José de Drummond: “E agora?”, perdido na burocracia do nada.

O gesto se radicaliza quando ele aproxima a máquina do público, principalmente das crianças, e inicia o ritual de catalogação. Carimbos surgem de bolsos secretos; ele imprime selos em mãos, braços, camisetas, como se cada pele fosse página a ser protocolada. O toque é delicado e preciso, quase cerimonial, e transforma cada espectador em documento vivo. As crianças se oferecem, risonhas, para serem “arquivadas”, participando de uma brincadeira que é também ato de inscrição: seus corpos passam a integrar o acervo efêmero da performance. Esses carimbos funcionam como metáfora pungente: diante do colapso iminente, restaria apenas a tentativa de garantir vestígios, não para preservar, mas para afirmar que existimos, mesmo que por um instante.

Realizado com recursos da Política Nacional Aldir Blanc, o trabalho reafirma a urgência de manter a arte no espaço público, não como mero entretenimento, mas como gesto capaz de redesenhar sentidos e instaurar dramaturgias. Em C.A.B.Ô., cada detalhe, a divulgação que convoca, o horário que muda a luz, o figurino que vibra com a máquina, a trilha de ruídos e silêncios, o trajeto que obriga o público a se mover, participa dessa escrita ampliada. O Parque Ipanema, espaço de lazer, converte-se em arena política e campo de travessia, onde significados não preexistem: nascem e se desfazem a cada encontro. Passantes tornam-se coautores, compondo uma coreografia invisível em que olhar, pausa, riso ou recuo pesam tanto quanto o gesto do artista.

“C.A.B.Ô.” não fecha; racha. Quando a máquina se afasta e o palhaço desaparece, o parque retoma seu ritmo, mas não seu estado anterior. O público leva na pele mesmo quando a tinta do carimbo some, a prova de que a cidade é escrita a muitas mãos e que o arquivo verdadeiro é o corpo em movimento. Talvez o nada não possa ser guardado, mas a experiência de tê-lo vivido é o que nos arquiva.

Fotos: Teuller Morais