Vielas & Rito: dança em processo, corpo em construção


Foto: Geniane Vieira

Na última segunda-feira, o Espaço Hibridus Ponto de Cultura recebeu a circulação dos espetáculos Vielas e Rito, do Coletivo Jazz Dance, dirigido por Narjara Lima. Apresentar dois trabalhos com elenco numeroso e temáticas desafiadoras como ancestralidade e cotidiano periférico já é, por si só, um gesto de coragem. Mas é também um exercício de risco — especialmente quando o que se coloca em cena são corpos ainda em formação, em busca de vocabulário, potência e presença.

Ambos os espetáculos apostam em temáticas de grande densidade simbólica. Vielas trata da vivência urbana, das brechas e resistências do corpo periférico. Já Rito evoca a ancestralidade, as espiritualidades negras, o corpo em festa e em transe. Temas complexos, que pedem não apenas técnica, mas memória, atravessamento, tempo. E talvez seja esse o principal nó da noite: os corpos em cena — jovens, dedicados, mas ainda verdes — não conseguem sustentar a densidade das ideias que a coreografia tenta construir.

A trilha sonora, por outro lado, é impecável. Rica, brasilidade pulsante, diálogos com o afro, o eletrônico, o popular. Mas os corpos não a acompanham. A música pede mais chão, mais história, mais lastro — e o elenco ainda dança “por fora”, como quem encena o gesto sem ter sido atravessado por ele. É um problema de maturação, e não de vontade.

A coreografia, assinada por João Carlos Cardoso, traz evidentes ecos do Grupo Corpo — e aqui chegamos a outro ponto sensível. No interior de Minas, o Grupo Corpo ainda é a principal referência de sucesso e qualidade na dança. Isso molda não só o olhar dos jovens artistas, mas suas escolhas estéticas, sua compreensão de “o que é dança contemporânea”. O risco é tornar-se cópia: herdar o vocabulário sem a experiência, repetir a estética sem elaborar o contexto. E é nesse ponto que Corpomídia, de Helena Katz e Christine Greiner, nos ilumina: o corpo não é suporte de uma ideia externa, mas meio de produção de conhecimento. Um corpo que só repete sem se implicar, não propõe — apenas ilustra.

Nesse sentido, o grupo ainda carece de corpos que proponham. Corpos que, em vez de executar, tensionem, desconstruam, inventem. A sugestão aqui não é por mais técnica, mas por mais atravessamento. Talvez a introdução de práticas como a dança afro-brasileira ou a capoeira angola possa oferecer aos jovens artistas um vocabulário mais alinhado aos temas que desejam abordar — e mais coerente com seus próprios corpos, histórias e territórios.

Dentro desse quadro, Filipe Fernandes aparece como uma exceção. Artista experiente, negro, com trajetória sólida como modelo, ator e bailarino, ele possui um domínio de cena que o destaca com naturalidade. Mas mesmo ele, que poderia se entregar ainda mais, parece segurar sua potência — e talvez com razão. Uma entrega maior evidenciaria ainda mais a disparidade entre sua presença e a do restante do elenco. Há, ali, um desequilíbrio estrutural que não se resolve com esforço individual.

Importa lembrar que essa circulação foi viabilizada com recursos da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) de Ipatinga. O edital exigia, no mínimo, três apresentações de um espetáculo com duração de pelo menos uma hora, e o Coletivo Jazz Dance levou aos palcos dois espetáculos distintos, com nove performers em cena. Tudo isso com apenas R$ 20 mil. É um valor que beira o absurdo diante do que se exige — não se trata apenas de fazer dança, é quase um milagre. É preciso denunciar: não há política cultural sustentável que trate criação, pesquisa e circulação com tamanha precariedade. E ainda assim, o grupo realizou. Só com muito amor, afeto e entrega coletiva se sustenta algo assim. Nesse cenário, o trabalho do Coletivo Jazz Dance precisa ser reconhecido não apenas como realização artística, mas como ato político de resistência. E o Espaço Hibridus Ponto de Cultura segue cumprindo sua função com dignidade e compromisso: ser um território de abrigo, visibilidade e fomento à criação local, sobretudo da dança.

A plateia não estava cheia, mas para uma segunda-feira em Ipatinga, foi um bom público. E é importante que tenha sido: não apenas para a sobrevivência de espaços como o Hibridus, mas para que artistas em formação possam entender que o palco é também lugar de escuta e risco — que se aprende com o outro, com o erro, com a cena.

Vielas & Rito ainda não são espetáculos maduros. Mas espetáculos de corpo — sejam de dança, teatro ou circo — precisam ser apresentados muitas vezes para ganhar densidade, para criar carne e verdade. É no tempo de repetição, de erro, de escuta e de insistência que as obras se constroem. O que vimos foi uma primeira entrega, cheia de desejo, de intenção e de espaço para crescer. Que os corpos sigam em cena, e que a cena siga sendo esse lugar onde a maturidade não é ponto de partida, mas horizonte.

por Wenderson Godoi