Baby: Corpos Dissonantes, Danças Insurgentes

Por Wenderson Godoi
Numa noite que prometia chuva, no íntimo do bar O Beco, espaço que já acolheu iniciativas como a Acuenda – manifestação artística cultural pautada pela diversidade de gênero – e o cineclube LGBT+ do Hibridus, a exibição do filme Baby pelo cineclube Los Películas, neste mês em que se celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBT+, tornou-se mais do que uma sessão de cinema: foi um ato de resistência afetiva. A presença emocionante da irmã de Ricardo Teodoro, nosso ator da região, conferiu ainda mais humanidade à noite, tecendo pontes entre a tela e o público de Ipatinga.

O filme, dirigido por Marcelo Caetano e roteirizado em parceria com Gabriel Domingues, compõe um mosaico de afetos marginais. Ronaldo e Baby se encontram em uma relação que escapa às categorias tradicionais: ora amantes, ora pai e filho, ora sócios na dura vida de garotos de programa. Ao redor deles, outras formas de família emergem, como a ex-mulher de Ronaldo e sua companheira criando juntos o filho. Um sopro de vida que contradiz a rigidez proclamada por figuras como o Papa Leão XIV, que insiste em reduzir família a “união estável entre homem e mulher”. No universo de Baby, a família é o que se constrói a partir das sobras da rejeição e da urgência do afeto.

A câmera de Joana Luz e Pedro Sotero, de uma delicadeza quase tátil, percorre a noite de São Paulo como quem acaricia cicatrizes. O filme bebe na estética de Wong Kar-Wai, tingindo a cidade com cores de desejo, perda e sobrevivência. Corpos negros, dissonantes, prostituídos, marcam a tela com uma presença inescapável. A atuação de Ricardo Teodoro é, aqui, um verdadeiro tour de force. Seu Ronaldo transborda contradição: cuidador e explorador, terno e autoritário, quebrado e inteiro. Não é à toa que sua interpretação lhe rendeu o prêmio de Melhor Ator Revelação na Semana da Crítica de Cannes, além de diversos outros prêmios em festivais ao redor do mundo. A exibição no O Beco foi, assim, um retorno simbólico — sua irmã na plateia emocionou-se como todos nós ao ver o filho da terra brilhar internacionalmente.

Tecnicamente, Baby é um filme de rara harmonia. Fotografia, trilha sonora (de Bruno Prado e Caê Rolfsen) e montagem (de Fabian Remy) trabalham como um só organismo, conferindo densidade e respiração à narrativa. Não por acaso, o filme já acumula mais de 25 prêmios internacionais, incluindo Melhor Filme no Festival do Rio, reconhecimento em Havana, na Sérvia, e, claro, a consagração em Cannes.

Mas há algo que me inquieta. Como em tantos filmes queer – de Brokeback Mountain a este – o final não nos oferece a união dos protagonistas. Baby e Ronaldo se separam. Isso não é um erro do roteiro, mas uma denúncia das geografias de desencontro que ainda marcam as trajetórias LGBT+. Num mundo que ainda expulsa seus corpos dissidentes para as bordas, o afeto é conquistado à custa de perdas e despedidas. E talvez por isso Baby toque tão fundo: porque nos lembra que resistir é amar, mesmo quando o amor não encontra pouso.

E é justamente quando a palavra se esgota, que os corpos falam. No gesto, no movimento, no compasso compartilhado, Baby encontra uma das suas cenas mais potentes. E é impossível falar de Baby sem mencionar a cena de dança que pulsa como um grito de resistência e afirmação: ali, no limiar do adeus, Baby ensina o voguing — aquela dança de rua que nasceu nas comunidades negras e latinas, inspirada nas poses glamurosas da Vogue, onde o corpo se faz manifesto, onde cada gesto é uma história. Ronaldo, em troca, ensina o boxe a Wellington — não só técnica de defesa, mas linguagem de sobrevivência. O que vemos não é apenas um ensaio de passos: é um diálogo visceral entre corpos marcados pela rua e pela rejeição. Como em Coringa, quando Arthur Fleck se empodera no movimento, Wellington dança não para entreter, mas para existir com dignidade, para se afirmar num mundo que lhe nega espaço. A coreografia improvisada entre ballroom e boxe encapsula toda a trajetória dos personagens: na leveza teatral do voguing, Baby reivindica brilho e presença; na força contida do boxe, Ronaldo oferece a coragem de quem resiste. É um dos momentos mais belos do filme — uma síntese coreográfica da complexidade humana, onde a dança transforma a vulnerabilidade em arte e a intimidade em liberdade. E quando aquela música toca, e aqueles corpos se encontram na cadência dos gestos, o que vibra não é só a dança, é o direito de existir e amar, mesmo que o mundo insista em apagar.

Em resumo, Baby é um filme belíssimo, doloroso e necessário. Um conto urbano que expõe as mazelas da comunidade LGBT+: corpos negros e dissonantes, prostituição, drogas, família que rejeita, sobrevivência na noite. Mas também é um filme de luz, de afetividade, de laços possíveis e urgentes. Em uma cidade como Ipatinga, em um espaço como O Beco, em um mês como este, ver Baby foi um presente. Um chamado para reconhecermos e celebrarmos os afetos que resistem — e os artistas da nossa própria terra que os fazem brilhar no mundo.


Foto: Vanessa Peixoto


Foto: Luciana Profiro


Foto: Vanessa Peixoto


Foto: Divulgação