Do aplauso à política: quem dança a dança no Vale do Aço hoje?

Reflexões sobre a cena da dança no Vale do Aço, a partir da IV edição do Festival I Love Jazz, e sobre os desafios de construir um campo de dança que vá além dos palcos.
Por Wenderson Godoi

O teatro do Centro Cultural Usiminas esteve lotado na abertura da IV edição do Festival I Love Jazz realizado pela Narjara Limma. A plateia vibrou com os espetáculos “Disco”, da Orfeu Cia., e “Olhos que revelam”, do Coletivo Dance. Foram mais de vinte corpos em cena.

É sempre potente quando a dança consegue encher um teatro. Os aplausos, o brilho nos olhos dos que estavam em cena e dos que vieram para vê-los, tudo isso é alimento importante. Mas também provoca perguntas.

Por que essa energia não se transfere para outros momentos em que a dança acontece na cidade?

Por que os corpos que dançam aqui não estão nas plateias de outros espetáculos?

Por que os que lotaram a sala hoje não atravessam para os fóruns, conferências, os debates, as políticas?

São perguntas que voltaram com força enquanto eu assistia àquela noite.

O festival celebra o jazz dance, um estilo nascido da fusão entre ritmos afro-americanos e formas de dança europeias. O jazz foi se moldando no palco, no cinema, no teatro musical e nas academias. Diferente do balé, que se consagrou como linguagem clássica, ou da dança contemporânea, que se expandiu como campo de pesquisa e invenção, o jazz manteve-se como um estilo cênico de dança. E é nesse espaço que a dança se moveu nesta noite: corpos virtuosos, pulsação, brilho e energia coletiva.

Entre os muitos corpos em cena, um em especial me prendeu o olhar. Maick Rodrigues.

Há bailarinos cuja virtuosidade técnica é evidente, mas que vão além: eles instauram presença. É isso que Maick fez. Sua dança não era apenas uma sucessão impecável de movimentos, era um corpo que nos convocava a permanecer atentos.

Como escreve Laurence Louppe:
“A presença responde a um sentido. Ela não é apenas, sob as luzes e os aplausos, um envolvimento estético e sensorial, mas a expressão de uma relação profunda do corpo com o espaço, o tempo e o outro.”

Há teóricos do teatro, como Mary Overlie, que falam de uma presença que se constrói na relação entre espaço, tempo e movimento, quando o intérprete não apenas ocupa o palco, mas o torna campo de experiência. Maick estava nesse lugar. Sua presença nos dizia: “não desvie o olhar, estou dançando aqui, para você”.

E isso é muito. Num cenário onde nem sempre a técnica encontra densidade, ver um corpo que nos mantém em estado de relação é um acontecimento.

Essa noite me fez pensar também em outras noites, de outras décadas.

Nos anos 80 e 90, Ipatinga e o Vale do Aço eram territórios vivos da dança. A Mostra de Dança e Aeróbica do ICMG, hoje UNILESTE, e o Endança – Encontro de Danças do Vale do Aço, criado por Dona Zélia Olguin e depois conduzido por sua filha Sallete Olguin, eram festivais que não só exibiam coreografias, eles mobilizavam redes, criavam campo, faziam política cultural.

A dança movimentava a cadeia produtiva da região: Ballet Stagium de Fátima Nogueira, Academia Olguin, Corpo e Movimento de tia Hélia Barbuto, Korpu’s Cia. de Dança, Stúdio de Dança Ailton Amâncio, Academia da Maria Helena em Coronel Fabriciano, Efectus Academia com Heloísa Rabelo, Jorge Soares, Silvio e Liliane, Orfeu Cia. de Dança, a Academia da Geralda, Fabiano da Dança de Rua entre tantos outros.

Foi desse caldo que emergiu o Corpo de Baile do GRUCON, que mais tarde se transformaria no Hibridus Dança.

Nos anos 2000 a Mostra de Dança e Aeróbica do ICMG já não existia mais, mas o Endança permanecia agora com um novo ciclo que se abria: Flux Cia de Dança com Carlos Passos, Meia‑Cia Dança Teatro com João Carlos (que se tornou o Casa Laboratório), Núcleo Dança Dor com Gessé Rosa, In Boa Cia, Hágios Cia de Dança, Grupo Novo Proceder, Cia Cíntia Barros de Danças Árabes, Espaço da Dança com Marcela Toledo entre tantos outros.

Era um tempo em que dançar não era apenas subir ao palco. Era participar de um campo em que as questões da dança: estética, memória, política, corpo, estavam sendo pensadas e discutidas coletivamente.

Hoje temos uma cena que, embora ainda vibrante em certos momentos, é muito mais rarefeita. Poucos grupos estáveis. A maioria da dança que se pratica está concentrada em academias voltadas para o ensino infanto-juvenil.

Os festivais que resistem são poucos, mas fundamentais: o ENARTCi – Encontro de Dança Contemporânea de Ipatinga, do Hibridus, em sua 18ª edição; o Corpografias e o Mercado Livre na Dança, ambos da Filó Incubadora Cultural, cada um em sua 7ª edição.

Nas periferias, a dança de rua pulsa com força: B-Boy Luizin e o Portal de Cultura Urbana mantêm a chama acesa nas praças e nos espaços abertos.

Mas a pergunta persiste. Onde estão os bailarinos que vimos em cena nesta noite? Por que não os vemos nas outras platéias dos espetáculos de dança que a cidade produz?

Por que o público que lotou o Centro Cultural Usiminas não transita para outros espetáculos de dança que a cidade produz? Por que não se faz presente nas mostras, nas residências, nas apresentações que acontecem ao longo do ano? Por que a energia que mobiliza um teatro não se estende para sustentar um campo de dança mais vivo e conectado com a cidade?

Por que, quando se trata de pensar a política da dança, de construir junto, os corpos desaparecem?

É como se estivéssemos dançando em ilhas, ilhas bonitas, cheias, mas que não se conectam a um arquipélago maior, capaz de sustentar a dança como campo e como política cultural.

Neste momento, acontece o 2º Fórum Mineiro de Dança, realizado por Jussara Braga de Viçosa/Mariana, um espaço fundamental para pensar e articular políticas para a dança em Minas.

Estamos em um tempo de oportunidade: com a PNAB (Política Nacional Aldir Blanc), teremos, pela primeira vez, um investimento contínuo, cinco anos de recursos para a dança. Isso nunca aconteceu antes.

Mas recursos sem articulação deixam pouco legado. É hora de nos perguntarmos, com coragem: como queremos ver a dança de Ipatinga, do Vale do Aço, da Região Intermediária de Ipatinga daqui a cinco anos?

Queremos criação? circulação? espaços de ensaio e de residência? pesquisa? memória? publicações? intercâmbios? festivais que realmente conectem público, artistas e território?

Sei que a dança precisa de aula, de ensaio, de musculatura, e que sem isso o corpo não sustenta a cena. Mas a dança também precisa de presença política. Toda vez que se convida para uma reunião, uma conferência, um fórum, ouvimos a mesma resposta: “não posso, tenho ensaio”, “não posso, estou em aula”. É preciso entender que estar presente nesses espaços é tão necessário quanto estar em sala de aula. Porque tudo isso só será possível se a presença que vimos no palco se tornar também presença no coletivo, na política, no conselho, no debate, e na construção do futuro da dança que queremos ver acontecer.

A dança que se sustenta no tempo não vive só do aplauso momentâneo. Vive da cidadania do bailarino, da presença nos processos que constroem o campo.

Que os corpos que dançaram nesta noite possam também estar nos espaços onde a dança é pensada, discutida e planejada. Que o Festival I Love Jazz possa seguir vivo, que tenha muitas edições pela frente, mas que se permita crescer para além da cena. Quantos desses jovens se inscreveram na LPG ou na PNAB? Quantos deles entenderam que também podem ser autores, produtores, criadores de projetos? Quantos sabem que construir presença no campo da dança também passa por participar das decisões que moldam seu futuro?

A dança precisa mais do que corpos que se movem no palco: precisa de vozes, de escuta, de pensamento crítico, de ação política.