Por Wenderson Godoi
Há festivais que apenas exibem coreografias; há outros que exibem coreografias e revelam a estrutura que as produz. Em novembro, o Centro Cultural Usiminas viu dois desses últimos: Brasil Terra de Histórias, do Thaylon Vieira Estúdio de Dança de Coronel Fabriciano, e O Sonho de Cinderela, do Espaço da Dança Marcela Toledo, de Ipatinga. Ambos ocuparam o teatro com uma força que ultrapassa a palavra “plateia”: eram pessoas-com-cadência, pessoas-que-vibram, pessoas-que-carregam-crianças-no-colo-e-câmeras-na-mão; famílias inteiras investidas no ritual que sustenta a dança no Brasil desde muito antes de existir política pública para ela.
Assistir ao espetáculo de Thaylon Vieira é perceber que o país inteiro que cabe no Vale do Aço e que o Vale do Aço sempre produziu encontra um modo de existir em movimento. O repertório brasileiro escolhido por ele não foi gesto decorativo: Clara Nunes, Maria Bethânia, Cazuza, Elza Soares, Tim Maia, cânticos de terreiro, paredão de funk, tudo isso operava como decisão de mundo. Cada música colocava o corpo diante da mesma pergunta: como dançar Brasil sem reduzir Brasil?
No meio disso, o heels dance praticado por Thaylon não entra como provocação estética: é política na sola do salto. Homem dançando de salto alto, performando sensualidade e potência, desmontam uma masculinidade que insiste em se esconder atrás do aplauso fácil. Dança-se sobre o salto para fazer tremer uma estrutura que não quer mudar. E tremeu.
Há outro desvio importante: a presença da APAE no encerramento. Ali onde tantas academias encerrariam com um número virtuoso, Thaylon fecha com samba de roda dançado por corpos que o sistema costuma silenciar. Quem prestou atenção viu: o que se dançava ali não era a coreografia, mas a própria ideia de pertencimento.
É dentro desse lugar que a participação do Hibridus aconteceu. Não como “número convidado”, mas como costura entre dois modos de existir na dança: o da academia e o da criação contemporânea. Depois de não dançar jazz desde 1999, meu corpo volta ao estilo pela provocação de Thereza Rocha para Ornitorrinco, que estreia no Centro Cultural Usiminas nos dias 30 e 31 de janeiro de 2026. E o fato de Thaylon ter aceitado coreografar e convidar o Hibridus para apresentar em seu espetáculo Brasil Terra de Histórias, revela algo raro: quando a cadeia produtiva da dança se reconhece mutuamente, ela se fortalece.
Uma semana depois, o palco volta a se mover. O Sonho de Cinderela, do Espaço da Dança Marcela Toledo, comemora cinco anos de novo endereço com uma escolha clara: revisitar um clássico sem obedecer ao manual do balé clássico. A presença do Núcleo Dança Dor, de Gesse Rosa, com intervenções contemporâneas, impede Cinderela de virar bibelô. E a entrada do hip hop de Chrislaine Sabatine desmonta qualquer ideia de pureza estilística: o relógio dispositivo que define o destino de Cinderela vira mecanismo urbano; o tempo, que sempre foi instrumento de opressão, vira groove. É deslocamento inteligente e urgente.
Nos dois espetáculos, algo se repetia: turmas cheias, corpos diversos, famílias inteiras presentes, produção impecável. O que se repetia não era o brilho do palco era a ausência gritante de reconhecimento sistêmico.
Porque, se há algo que esses festivais deixam claro, é o tamanho do que nunca entra nas estatísticas oficiais:
— figurinos;
— sapatilhas;
— locação de teatro;
— cachês;
— costureiras;
— fotógrafos;
— maquiadores;
— técnicos;
— designers;
— transporte;
— alimentação;
— horas de ensaio;
— manutenção de espaço;
— e, sobretudo, tempo vivo investido em formação de público.
Há mais de 2.400 academias de dança formalmente registradas no Brasil, segundo o CNAE 8592-9/01. E essa formalidade não abarca a enorme periferia que gira em torno delas: professoras que atuam como MEI em outras categorias; escolas que usam CNAEs de educação ou recreação; grupos comunitários em salões de igreja; aulas em garagens, quintais, praças públicas. Mas mesmo ficando apenas no que o Estado consegue enxergar, o quadro é eloquente: cada academia abriga, em média, uma centena de alunos, cerca de 360 mil pessoas praticando dança regularmente em ambientes formais.
E se cada uma paga uma mensalidade que varia, segundo o Sebrae, de R$ 30 a R$ 200, chegamos facilmente a uma movimentação anual que ultrapassa meio bilhão de reais sem incluir o que está fora do radar (e quase tudo está). Quando somamos figurinos, sapatilhas, maquiagens, fotos, vídeos, ingressos, cachês, transporte, alimentação, locação de teatro e as microeconomias das mães costureiras e dos pais eletricistas que socorrem os espetáculos, esse número dobra.
A dança não é pequena: é apenas subcontabilizada, subestimada, subentendida.
A cadeia produtiva da dança existe, gera renda, emprega e movimenta territórios inteiros, mas permanece invisível porque o Estado insiste em olhá-la como atividade extracurricular quando, na verdade, ela sustenta um mercado que funciona todos os dias. O que esses espetáculos mostram, com nitidez que os números oficiais não alcançam, é que a economia da dança se move fora das estatísticas, mas dentro da cidade. E mover fora da estatística não é existir menos é apenas existir sem ser contado.
Mas nenhuma política cultural brasileira contabiliza esse ecossistema. Nenhuma. Não existe, no país, um único instrumento capaz de medir o que acontece dentro de uma sala de dança, muito menos o que transborda dela. A PNAB fala de territórios, mas não sabe quantos corpos ocupam esses territórios pela via da dança. O Sistema Nacional de Cultura menciona formação, mas não reconhece que as academias compõem a maior malha de formação continuada em artes do Brasil. Editais exigem indicadores, mas não produzem indicadores para esse campo. A invisibilidade não é acidente: é sintoma.
Nenhum censo nacional captura o que acontece nos palcos lotados de Ipatinga e Ipatinga aqui é metonímia, não exceção. O IBGE não mede esse público. O MEC não o reconhece como parte da educação. O MinC ainda não desenhou ferramentas capazes de ler o impacto econômico e simbólico desses festivais que enchem teatros mesmo quando se repete que “as pessoas não vão ao teatro”. Vão. Só não vão aos lugares que a política supõe. O público existe quem não o vê é o Estado.
Nenhuma secretaria de cultura sabe quantos alunos de dança existem no Brasil. Nem municipal, nem estadual, nem federal. Não há planilha, PowerBi ou relatório que dê conta disso. Essa ausência não significa desorganização: significa desinteresse histórico. Quando um setor movimenta milhares de crianças, adolescentes e adultos toda semana e não aparece em estatística nenhuma, o problema não é a dança é o olhar que escolhe não vê-la.
E, no entanto, ali estavam eles: centenas. Vibrando. Produzindo economia enquanto produzem memória. Investindo em figurino enquanto investem em pertencimento. Alimentando, com o preço do ingresso, não apenas o caixa do teatro, mas a continuidade de uma prática que fabrica algo que nenhuma política pública consegue produzir sozinha: comunidade. Ali estavam eles, provando que a dança não precisa pedir legitimidade ela já a tem. Falta apenas que o Estado deixe de tratá-la como ornamento e a reconheça como aquilo que ela sempre foi: infraestrutura de futuro.
O que esses espetáculos mostraram não é apenas que o público das academias existe, isso já sabíamos. O que eles escancaram é que a cadeia produtiva da dança é sustentada por esse público: por essas famílias, por essas professoras, por essas crianças de sapatilha brilhante e adolescentes de delineado impecável que movimentam o teatro da cidade mais do que qualquer temporada profissional conseguiria sonhar.
A pergunta que fica e que precisa continuar reverberando, não é apenas a mesma do texto que recentemente escrevi: “Do aplauso à política”. Ela ganha outros músculos, pede outras articulações:
Por que esse público não migra para os espetáculos dos grupos locais?
Por que o corpo que brilha no palco não ocupa a plateia quando é a vez do outro bailar?
E, talvez ainda mais urgente: o que falta para que a política cultural reconheça esse ecossistema não como apêndice escolar, mas como a maior infraestrutura viva de formação em dança do país?
Se quisermos falar seriamente de dança no Brasil, precisamos admitir o que o palco de Ipatinga mostrou com nitidez irrefutável: a dança já construiu o seu sistema. Ele existe com ou sem edital, com ou sem reconhecimento, com ou sem a atenção do Estado. Ele funciona todos os dias, em salas lotadas, em festivais que transbordam, em corpos que insistem em aprender, repetir, lembrar, mover-se.
O que falta e falta muito é que o Estado aprenda a lê-lo.
Enquanto a política cultural operar como se esse ecossistema não existisse, seguiremos reproduzindo o mesmo descompasso: a cidade demonstra que quer dançar, mas os instrumentos públicos insistem em tratá-la como passatempo. O teatro lotado diz uma coisa; a política cultural, outra. Entre uma e outra, abre-se um abismo que não se resolve com aplauso. Resolve-se com escuta, presença, mediação, integração.
A dança já fez sua parte: criou público, território, pertencimento. Falta agora que o Estado veja. E, vendo, reconheça. E, reconhecendo, integre.
Só assim a dança deixará de ser exceção festiva e se tornará aquilo que já é na prática: política de futuro.



