A 3ª edição do ENCONTR’ARTE…NEGRO, realizada em Ipatinga, com o edital Afromineiridade do Fundo Estadual de Cultura de Minas Gerais, em novembro de 2024, traz à tona mais do que uma tradição cultural: propõe um diálogo entre o passado e o presente, articulando memória, resistência e a potência das expressões afro-brasileiras. Neste re-encontro com a história, o encontro reafirma a centralidade da ancestralidade negra como força criadora e transformadora, alinhando-se às lutas contemporâneas pela representatividade e preservação cultural.
Desde seu início, em 1999, o ENCONTR’ARTE…NEGRO foi um espaço forjado na força coletiva. Claudiane Dias atriz do Grupo de Teatro Farroupilha, o sociólogo Cláudio Letro e o artista da dança Wenderson Godoi do Hibridus Ponto de Cultura reuniam-se para imaginar um encontro que desse visibilidade à arte negra no Vale do Aço. A edição inaugural, feita sem patrocínios, é lembrada pelas rodas de conversa promovidas pelo GRUCON – Grupo de União e Consciência Negra e do Movimento Negro Organizado do Vale do Aço, as apresentações do Coral da Família Alcântara de João Monlevade, do grupo Spin Force Crew de Belo Horizonte, DJs como Fabiano Ravani e Bruno Groovy, além da dedicação das cozinheiras da comunidade que alimentavam os participantes em meio a colchões improvisados no extinto Colégio Assedipa.
Porém, o que foi vivido em 1999 e posteriormente numa segunda edição realizada em 2002 permanece apenas na memória dos que participaram. Sem registros fotográficos ou audiovisuais, essas edições evocam a fragilidade da memória coletiva quando esta não é devidamente preservada. Como nos alerta Paul Ricoeur, “a memória que não é registrada é um eco que se perde no tempo”. É justamente nesse ponto que a edição de 2024 se destaca, trazendo o registro como parte integrante e imprescindível de sua proposta.
Sob o registro audiovisual de Jaydson, conhecido como Naga, e o olhar fotográfico de Geniane Vieira, o ENCONTR’ARTE…NEGRO 2024 assume a responsabilidade de inscrever-se na história de forma tangível. Ambos, profissionais negros do setor audiovisual, imprimiram ao evento um olhar que transcende o momento e resgata o lema “Nada sobre nós, sem nós”. Mais do que um registro técnico, esta edição se compromete em deixar um legado audiovisual que ecoará como memória viva para futuras gerações. Parte desse registro já pode ser conferido no Instagram oficial do evento: @encontrarte_negro.
Além disso, já está sendo pensado um projeto de desdobramento desta edição, com o Coletivo Audiovisual Negro do Vale do Aço para a produção de um filme baseado nos registros realizados. Este projeto busca transformar a documentação em um produto cultural acessível, criando uma narrativa que vá além da memória do evento, configurando-se como um resgate e uma reparação histórica para a arte e a cultura negra na região do Vale do Aço.
Outro destaque desta edição é a consistência ética e política de sua equipe. Todo o encontro foi realizado por mãos negras, desde a concepção à execução. A frase “Nada sobre nós, sem nós” ganha aqui uma materialidade inquestionável, evidenciando que a arte negra não apenas representa uma luta, mas protagoniza sua narrativa.
A equipe composta por Claudiane Dias (produção), Luciano Botelho (coordenação de comunicação), Reny Batista (coordenação geral e gestão financeira), Wenderson Godoi (curadoria, compartilhada com Claudiane Dias) e Jefferson Ornelas (logística) não apenas garantiu a realização do ENCONTR’ARTE…NEGRO 2024, mas também reafirmou a capacidade das comunidades negras de articularem grandes eventos culturais com excelência e autonomia.
Além disso, a identidade visual do projeto, com cartazes e cards que trouxeram unidade e beleza ao evento, foi criada pelo designer gráfico Leander Dos Santos (Dogueto), contribuindo para comunicar e potencializar a mensagem do encontro.
Esse protagonismo, construído coletivamente, é um passo fundamental na desconstrução de paradigmas coloniais que, por muito tempo, relegaram os corpos negros à margem da produção cultural. O ENCONTR’ARTE…NEGRO mostrou que, quando as mãos negras trabalham juntas, elas não apenas criam eventos marcantes, mas também transformam narrativas e constroem futuros possíveis.
Realizar o ENCONTR’ARTE…NEGRO também foi um ato de enfrentamento à burocracia que permeia o acesso aos recursos públicos de cultura. A aprovação pelo Fundo Estadual de Cultura (FEC) envolveu formulários extensos, trâmites na plataforma digital de incentivo de MG, contratações pelo Sistema Eletrônico de Informações (SEI), emissão de notas fiscais, assinaturas e readequações intermináveis que desafiam até os mais experientes. Esse processo só foi possível graças ao apoio da Superintendência de Fomento, Capacitação e Municipalização da Cultura de Minas Gerais, especialmente na pessoa de Pablo Soares Pires (nosso querido Dom), cuja sensibilidade e comprometimento foram essenciais para que o encontro acontecesse.
No entanto, mesmo com tanto esforço e planejamento, enfrentamos um cenário desafiador com a Prefeitura de Ipatinga. Havíamos conseguido, em conversas meses antes, o compromisso da Prefeitura de ceder palco, som, luz e camarim dotado de Rider técnico, que atenderia às necessidades do evento. A logomarca da Prefeitura consta, inclusive, em todo o material de divulgação, evidenciando essa parceria prometida. Porém, no momento da realização, o apoio não foi cumprido. O evento aconteceu em um palco usado pela FeirArte, sem a infraestrutura adequada, e, lamentavelmente, sem iluminação.
Quando questionada, a justificativa da Prefeitura foi de que, já no final do ano, não havia mais recursos disponíveis. No entanto, sabemos que outros eventos realizados próximos ao Encontr’arte contaram com toda a estrutura cedida pela Prefeitura. Essa retirada de apoio, sem aviso prévio, gerou impactos significativos na realização do encontro, evidenciando a falta de compromisso e de planejamento efetivo do poder público local.
É importante lembrar que eventos como o ENCONTR’ARTE…NEGRO contribuem diretamente para a pontuação do município no ICMS Cultural, um mecanismo que reconhece e valoriza a realização de ações culturais e que, consequentemente, beneficia financeiramente a Prefeitura. O evento certamente colaborou para esse índice, reforçando a relevância de políticas públicas que integrem e apoiem iniciativas culturais locais. Contudo, a contrapartida da Prefeitura com o projeto foi inexistente, revelando um desequilíbrio entre o benefício obtido e o apoio efetivo dado à execução do evento.
Essa realidade expõe a urgência de repensarmos não apenas a burocracia que envolve os recursos da cultura, mas também o acesso equitativo e comprometido aos meios que possibilitam essas realizações. A falta de apoio municipal em um evento que contribui diretamente para a pontuação do ICMS Cultural é, no mínimo, contraditória e pede uma revisão de prioridades e transparência na gestão cultural.
O ENCONTR’ARTE…NEGRO aconteceu, apesar de todos esses desafios, como um símbolo da força e da resistência da cultura negra. Mas a luta para garantir que eventos como esse recebam o devido suporte continua, pois são fundamentais não apenas para a memória e a identidade local, mas também para a sustentabilidade cultural do município como um todo.
A programação diversificada, composta por oficinas, rodas de conversa e apresentações realizadas no Parque Ipanema, no Espaço Hibridus Ponto de Cultura e na Escola Estadual Salvelino Fernandes Madeira, ultrapassa o significado de uma simples celebração. Foi uma poderosa reafirmação de que as expressões afro-brasileiras carregam consigo não apenas a força transformadora do passado, mas também o pulsar de um futuro desejado e construído coletivamente.
A programação incluiu a oficina de Tambor Mineiro, conduzida por Geleia no Parque Ipanema, trabalhando a afromineiridade através dos ritmos que conectam memória e território, e a oficina de Dança Afro, ministrada por Preta Lua para os alunos da Escola Estadual Salvelino Fernandes Madeira, fortalecendo as raízes culturais nas novas gerações.
O diálogo intergeracional promovido pela Roda de Saberes, que reuniu mestres e educadores locais como Sávio Tarso e Paulo Amaral, junto com Roda das Pretas, Bloco Cultural e Carnavalesco Afoxé, Mayara Costa, Nayarah Carraroh e o coletivo A Rua Declama, sob a mediação afetuosa de nossa querida Betinha, ecoou o pensamento de bell hooks, para quem a educação é essencialmente um ato de liberdade. Aqui, cada troca reafirmou a potência de aprender e ensinar como formas de resistência e construção identitária.
A riqueza da programação artística revela o vigor criativo de artistas locais, como Jaqueline Carla, que apresenta sua exposição de biojóias, e a Associação Cultural Raiz do Quilombo, com as performances de maculelê e capoeira, celebrando a ancestralidade em movimento. Geléia, com o Bloco Valentinas, traz um show musical que foi pura energia, enquanto o coletivo A Rua Declama deu voz à poesia falada e à música. A Roda das Pretas, com o Giro das Pretas, e Preta Lua, com suas poesias, encontraram na Ciranda de Saia e no Bloco Cultural e Carnavalesco Afoxé a força do corpo coletivo em celebração. Já o Luizin BBoy através do Capobreak, com sua fusão de capoeira e break, e a emocionante Batucada, que encerrou a programação com um batuque arrebatador, revelam a pluralidade de identidades e trajetórias que compõem essa experiência. Tudo isso reafirma a tese de Stuart Hall: “a cultura é um espaço de luta e negociação”. E aqui, essa luta se materializa na afirmação de nossas raízes, enquanto a negociação se dá com um público que redescobre sua própria história e se reconhece na arte que pulsa e emociona.
O ENCONTR’ARTE…NEGRO de 2024 não é apenas um encontro. É um manifesto. É um lugar onde a memória se transforma em resistência, onde o passado encontra o presente para projetar futuros possíveis. Que a história registrada pelas lentes de Naga e Geniane Vieira seja o início de um ciclo onde nunca mais precisemos lamentar a ausência de registros. Que as mãos negras que construíram esta edição inspirem outras tantas a fazerem o mesmo. E que a memória do ENCONTR’ARTE pulse, como a dança e os tambores que marcaram esta edição histórica.
Porque a arte negra não só resiste: ela transforma.
Wenderson Godoi
Artista da dança e produtor cultural