O Auto da Compadecida por Othon Valgas: o riso que insiste, o corpo que desenha, o teatro que permanece

Por Wenderson Godoi

Não sou crítico, mas tenho escrito, principalmente, sobre a produção de dança na região nos últimos tempos. Mas às vezes o que a gente vive como espectador nos atravessa de tal maneira que pedir silêncio seria negar o afeto. Foi assim neste fim de semana, ao assistir à leitura teatralizada de O Auto da Compadecida, dirigida por Othon Valgas no Teatro Zélia Olguin. Escrevo, portanto, não como especialista, mas como alguém tocado pela força de um gesto artístico que, mesmo no improviso, carrega 25 anos de permanência, insistência e construção coletiva.

Num território em que o teatro é muitas vezes visto como evento passageiro e a política cultural como promessa intermitente, celebrar 25 anos de um espetáculo como Santinhas do Pau Oco é mais que resistência: é milagre cênico. E como não poderia deixar de ser, é exatamente com esse imaginário – o do milagre, da fé, do riso como reza – que Othon inaugura o projeto Leituras Teatralizadas – 25 anos, com uma encenação vibrante e politicamente urgente de O Auto da Compadecida, obra-prima de Ariano Suassuna.

Vale lembrar que essa não é a primeira vez que Othon Valgas coloca o teatro de Ipatinga em diálogo com o pensamento crítico do país. Em 2008, ele realizou uma Conferência de Teatro sobre Shakespeare e trouxe ao Vale do Aço a maior crítica teatral do Brasil, Bárbara Heliodora. Foi um gesto que antecipava o que ele segue praticando até hoje: fazer do teatro um espaço de encontro, escuta e formação, mesmo onde as políticas públicas não chegam ou não permanecem.

No palco do Teatro Zélia Olguin, nos dias 26 e 27 de julho, a leitura encenada ganha contornos de cena plena. Não há cenários, nem grandes aparatos, mas há corpos que narram, que desenham no ar as geografias do sertão e da comédia popular brasileira. É uma encenação que revela as entranhas do fazer teatral – um “ensaio compartilhado”, como já apontava Suassuna sobre o próprio teatro –, em que o público é convidado a ver, ouvir e construir junto o acontecimento.

Mas o que acontece ali não é só uma homenagem a Suassuna: é também um gesto de afirmação política. Ao convocar nomes fundamentais da cena local e produzir um espetáculo sem financiamento, sem edital, sem patrocínio, Othon Valgas grita, com delicadeza: o teatro do interior existe e insiste, mesmo quando o Estado não quer vê-lo. Em tempos de fomento escasso e de burocracia impeditiva, ele segue lotando teatros no Vale do Aço e em Minas Gerais há quase três décadas, mantendo a comédia em cartaz, formando público e agregando artistas. Isso deveria ser estudado. Isso é política cultural feita no risco do afeto.

E o afeto está no elenco. Uma reunião rara de artistas da região, que nem sempre dividem o mesmo palco, mas que aqui se encontram em cena como numa grande celebração do fazer teatral coletivo. Diego Martins (João Grilo) e Dinei de Souza (Chicó) sustentam o eixo da comicidade com ritmo, escuta e cumplicidade; Filipe Fernandes, como o Sacristão, exibe domínio de tempo cênico e precisão nos gestos; João Carlos Cardoso (do Casa Laboratório), como o Padre João, traz equilíbrio entre a crítica e a religiosidade com inteligência afetuosa; a atriz convidada de BH, Aline Lacerda, empresta potência e ritmo à Mulher, numa presença que desliza entre o drama e o riso.

Fabinho (Padeiro) e Gustavo Horta (Emanuel) compõem o elenco com entrega e disposição ao jogo cênico proposto, contribuindo para a dinâmica da leitura e para a construção coletiva da cena. Já Chrika de Oliveira, como a Compadecida, é um achado de doçura firme — guia a narrativa com espiritualidade, presença e afeto. Cada artista, com sua singularidade, ajuda a erguer esse acontecimento cênico feito de encontros, escuta e generosidade em torno de uma obra que resiste ao tempo.

Mas é impossível não destacar os corpos que desenham o riso com a fisicalidade de um cartoon em cena: Ederson Martins Caldas (Severino) e Dalbert Vinicius (Capanga) não apenas leem, eles desenham os personagens no espaço com movimentos elásticos, expressões absurdas e deslocamentos que transformam a cena em uma espécie de animação ao vivo. São corpos em expansão, que convocam não só o riso, mas o maravilhamento da infância, da memória e da corporeidade popular.

E há ainda Marcelo Vieira, parceiro de cena e de vida artística de Othon Valgas há muitos anos, formando uma das duplas mais afinadas do humor teatral mineiro. Marcelo e Othon, eles compartilham uma química cênica rara e um tempo de comédia tão preciso quanto espontâneo, daqueles que só o convívio e o ofício afinam. São como Batman e Robin, Tom e Jerry, Mazzaropi e Genésio, Gordo e o magro — duplas em que o riso nasce da escuta, do jogo, do exagero e da pausa certa. Marcelo é um ator humorista completo, com domínio absoluto da linguagem do corpo e do cômico. Mesmo numa leitura encenada, ele faz o texto vibrar no corpo, desenha a piada no ar, reage com o olhar. Ao lado de Othon, eles não apenas dividem a cena: eles se amplificam mutuamente, se desafiam, se acolhem no gesto e na respiração do riso. Isso não se improvisa — isso se constrói com anos de palco, estrada e entrega à arte de fazer rir em comunidade.
Essa leitura encenada também adquire um tom de espelho: enquanto o cinema brasileiro celebra O Auto da Compadecida 2, Othon Valgas faz a obra voltar ao teatro de onde nunca deveria ter saído. Mas ele não copia o audiovisual, ao contrário: restitui à peça seu sentido comunitário, seu frescor oral, sua celebração da linguagem e do corpo como lugar de milagre. É, mais uma vez, um teatro que se faz com poucos recursos, mas com muita presença.

No fim, a pergunta que fica não é “como Othon consegue?”, mas “por que ainda é necessário que artistas como ele sustentem por décadas aquilo que deveria ser garantido como direito coletivo?”. Porque o que ele construiu — com sua trupe, seus parceiros, seu público — não é política de Estado, mas nasce da ausência dela. Não é feito sozinho, mas é feito sem apoio estruturado, sem continuidade pública, sem políticas consistentes para quem vive e faz arte fora dos grandes centros. E talvez seja por isso que Santinhas do Pau Oco siga sendo uma anomalia encantadora: porque prova que o interior não só resiste — ele inventa. Que a comédia, sim, forma público, gera economia, constrói memória e merece ser levada a sério.
Como João Grilo, Othon e sua trupe seguem há 25 anos driblando a escassez com afeto, astúcia e gargalhada — e isso é uma política do encontro que nenhuma planilha estatal ainda deu conta de formular.

“Santinhas do Pau Oco” completa 25 anos. E com ela, Othon Valgas nos lembra que fazer teatro é, antes de tudo, um ato de permanência.

E rir, nesse país — como diria nosso eterno Paulo Gustavo — continua sendo um ato profundamente político.

Foto: Rodrigo Zeferino

Foto: Rodrigo Zeferino