O mundo é redondo e o palco gira

Por Wenderson Godoi

Gertrude Stein escreveu The World Is Round em 1939. Era um livro para crianças, mas que falava sobre a complexidade de ser, o espanto diante do próprio nome, o medo de existir e a alegria de se repetir. “O mundo é redondo”, escreveu ela, “e tudo o que há nele é redondo. Mesmo o que parece ter fim, apenas continua”.

O Coletivo Aberto de Teatro, de Ipatinga (MG), tomou essa frase como ponto de partida para fazer girar um espetáculo que, mais do que narrar, experimenta o pensamento da circularidade.
Apresentado no Teatro Atiaia, em Governador Valadares, dentro do Palco Giratório do SESC, o espetáculo O Mundo é Redondo, com direção de Léo Coessens e atuação de Camile Gracian, é uma meditação cênica sobre o que é ver, escutar e estar.

O espaço, o corpo e a dramaturgia são feitos de círculos: um tatame redondo ocupa o centro, bolas de pilates orbitam em torno, óculos redondos ampliam e distorcem o olhar da atriz.

As cores rosa e azul sobrepõem-se como camadas de gênero e infância. A trilha, feita de sons redondos e respiração circular, desenha a ideia de que o tempo também gira.

Gertrude Stein desconstruía a linearidade da linguagem. Repetia palavras até que perdessem o sentido, abrindo espaço para outro tipo de compreensão uma compreensão pelo corpo, pela cadência.

O Coletivo Aberto faz o mesmo com o teatro: substitui a lógica do enredo pela experiência da atenção.

Não há conflito, há fluxo. Não há clímax, há movimento.

Camile não interpreta “Rosa”; ela traduz o gesto da autora o ato de repetir até que algo se desfaça e se refaça.
A atriz escreve palavras sobre o tatame. Do ponto de vista da plateia italiana, não se pode ler o que está sendo escrito.

Mas é justamente aí que o espetáculo se abre: o que não se lê passa a ser o que se sente.
Gertrude Stein dizia que “a escrita é o ritmo do pensamento em voz alta”; Camile escreve com o corpo inteiro.

Ao colocar lentes sobre os olhos, ela tenta enxergar mais e, ao mesmo tempo, mostra que ver demais é também perder o mistério.

O gesto de olhar é transformado em ação cênica, e o público é colocado na posição paradoxal de testemunhar o que não pode ver completamente.
A força do espetáculo está nessa inversão: o foco não está na história, mas no modo como o olhar é construído e negado.

No teatro italiano, de frente, a plateia percebe apenas fragmentos: o corpo que se curva, as palavras que somem, a luz que desenha um contorno.

Mas o espetáculo parece ter sido feito para ser visto de dentro, em círculo como se o público ideal fosse quem estivesse girando junto com ela.
Há uma tensão produtiva entre o que se vê e o que se imagina.

Camile Gracian é uma presença rara. Seu corpo, fora do padrão cênico dominante, mulher, preta, gorda, ou seja redonda, desloca o eixo da representação.

Em vez de esconder o corpo, ela o afirma como potência: o redondo é gesto político.
Sua atuação é feita de pequenas suspensões, silêncios que pesam, respiros que se tornam pensamento.

Ela cria uma dramaturgia do detalhe, onde o erro do som com microfone que falha, o desequilíbrio e a pausa são matéria coreográfica.
O figurino (blusa rosa, botas de solado rosa, sobreposição azul) reforça a estética da ambiguidade. É infantil e maduro, lúdico e filosófico.

A trilha sonora, de textura delicada e circular, cumpre função dramatúrgica precisa não ilustra, mas amplia a experiência do tempo.
Cada elemento cênico colabora para que o espetáculo se torne uma espécie de poema visual sobre o ato de girar.

A metáfora se dobra sobre si mesma.
Enquanto o Palco Giratório faz o teatro circular pelo país, O Mundo é Redondo faz o pensamento girar dentro de quem o vê ou de quem o poderia ver.

Mas naquela segunda-feira, às 14h30, o teatro girava quase vazio. O espetáculo acontecia diante de fileiras silenciosas, num horário em que o país trabalha, e quem vive sob a lógica do CLT dificilmente pode ocupar uma poltrona. O giro das ideias ainda não alcança o giro das políticas públicas: faltou mediação cultural, agendamento com escolas, faltou ação educativa que transformasse a passagem do espetáculo em encontro.

Tudo girava o corpo, a palavra, o som , mas o olhar insistia em permanecer plano.
E talvez aí resida a ironia mais aguda do trabalho: num país onde ainda é preciso explicar que a Terra não é plana, uma mulher preta gira o mundo com o corpo e, ao fazê-lo, desmente o achatamento simbólico de uma sociedade que desaprendeu a ver curva, diferença e profundidade.

Camile Gracian, sozinha no círculo, faz o que o teatro sempre prometeu fazer: restaurar o movimento do pensamento.
Seu corpo afirma o redondo como gesto político, porque girar, hoje, é resistir.
Ao lado do espetáculo, o programa do SESC promoveu o Pensamento Giratório, com o Hibridus Ponto de Cultura (MG) e a Trupe do Experimento (RJ) encontros que ampliaram o campo do que o Palco Giratório propõe: girar o corpo, o pensamento e a escuta.

Essas trocas entre artistas, territórios e olhares são o chão redondo sobre o qual o teatro continua acontecendo, mesmo quando o público é pouco, mesmo quando o país tenta parar.

O Mundo é Redondo é um espetáculo delicado, silencioso e firme.

Como Gertrude Stein, o Coletivo Aberto entende que pensar é girar.

O espetáculo termina, mas a rotação continua.
Porque o mundo é redondo, o palco gira, e só quem aceita perder o equilíbrio descobre o que é, de fato, estar em movimento.


Fotos: Teuller Morais