Q BRÔ: um encontro raro entre a delicadeza do cisne e o risco do gesto

por Wenderson Godoi

Chegamos em BH para ver dança. Eu e Luciano Botelho do Hibridus Ponto de Cultura e nosso querido amigo Carlos Passos da Filó Incubadora Cultural de Ipatinga. Nos deixamos levar por esse desejo antigo de ser corpo atravessado. E fomos. No CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil, entramos na sala e ali já estava tudo iniciado. Duas mulheres, poderosas, sentadas em cadeiras transparentes num diálogo frente a frente. Entre elas, uma mesa de vidro e, sobre ela, dois cisnes brancos de porcelana. Imagem inaugural de uma delicadeza que nos puxa pela mão para dentro de um lugar entre o real e o poético.

Dudude Herrmann e Lina Lapertosa se olham. Se deslocam. Reposicionam os cisnes. O que elas fazem com eles, fazem consigo. O gesto se constitui em uma relação entre o espaço do corpo e o espaço cênico. E é exatamente isso que acontece: o posicionamento dos cisnes coreografa as dançarinas, que nos mostram que coreografar não é prender o corpo a um plano, mas abrir caminho para o que pode ainda acontecer.

A trilha, precisa, de um magnetismo raro, nos prende à escuta. Ela não ilustra, ela provoca. Nos joga dentro da cena como se também estivéssemos sentados àquela mesa. É o som que ajuda a borrar as fronteiras entre as artistas, e entre elas e nós.

São duas danças que se encontram sem precisar se fundir. Lina vem com a precisão das linhas do balé clássico, mas rompe a previsibilidade. Abre fendas no gesto. Escapa do “repertório” para compor a partir do agora. Dudude, por sua vez, risca, rabiscando o espaço com uma dança que parece vir de dentro para fora, mas também do chão, dos lados, do que escapa. São danças com trajetórias que se colocam em diálogo, sem hierarquia. E, nesse encontro, criam uma dramaturgia do sensível.

Elas não se olham. Ao fundo, uma parede feita de galhos secos acompanha a cena como um vestígio de outono ou de ruína. Esses galhos vão sendo quebrados, espalhados pelo chão à medida que os corpos se movem. Quando enfim dançam juntas, e se abraçam, uma nova paisagem emerge: a projeção de galhos vivos, agora com folhas e um riacho, se derrama sobre elas e sobre todo o espaço. O que era seco, floresce. O que era fragmento, escorre em fluxo. O que era distância, se transforma em travessia.

O nome do espetáculo, “Q BRÔ”, não deixa dúvidas: trata-se de quebrar. Quebrar formas, ritmos, estruturas, silêncios. Mas, talvez, mais profundamente, quebrar as distâncias que o tempo, os estilos, os sistemas e o próprio campo da dança tentam nos impor.

A presença dessas duas mulheres de meia idade em cena é um gesto político. É dança que recusa a invisibilização. É uma afirmação da potência de quem persiste. A plateia, majoritariamente composta por mulheres mais velhas, parecia reconhecer ali um espelho. O corpo que insiste. Que já não precisa provar nada. Que dança por urgência e não mais por promessa.

Depois da apresentação, ainda ficamos para a roda de conversa com Ione de Medeiros, da lendária Oficina Multimedia. Sua fala nos atravessou como a dança que havíamos acabado de ver: com beleza e potência. Ione nos lembrou que a arte é um campo de ecologias, de cruzamentos de saberes, de resistências silenciosas e que estar em cena é também insistir na delicadeza como modo de existência.

“Q BRÔ” é da ordem do sensível. É para ser atravessado com o corpo inteiro, olhos, ouvidos, pele e memória. Uma partitura viva entre o que se quebrou e o que ainda insiste em brotar. Uma dança que, se escreve no tempo da atenção, e que ali se fazia presente em cada gesto, em cada respiração partilhada.

Em BH, nos deixamos tocar. Prestamos atenção como quem assiste ao renascimento de algo antigo e essencial. Voltamos com o coração mais mole, a escuta mais aberta e o corpo ainda reverberando a delicadeza e a coragem do que vimos. Porque assistir a “Q BRÔ” é mais do que ver dança, é presenciar um gesto de entrega entre duas artistas que dançam com tudo o que têm: tempo, história, silêncio, rasura e desejo.

Foi uma aula de dramaturgia, de generosidade, de competência e técnica. Mas, acima de tudo, foi um lembrete: quando duas mulheres potentes se colocam em cena com tamanha inteireza, o mundo para por instantes. E a gente, ali sentado, só consegue desejar que essa dança não termine nunca.

*Fotografia: Itálo Augusto