Quando o palco desaparece no corpo do mundo: Lady Gaga entrou no palco no dia 3 de maio como quem gira a chave de uma máquina prestes a ganhar vida. Mas a engrenagem real já estava em movimento horas antes. Era visível — quase palpável — a coreografia que se desenhava no subsolo da cidade: a multidão saindo do metrô, fluindo pelas ruas transversais e avenidas que desembocavam em Copacabana. Como diria o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett: Como veias que transportam um só sangue, as ruas pulsavam gente. Era o início de um espetáculo que ainda não tinha começado oficialmente, mas já dançava. Não se tratava de público caminhando até um show, mas de uma cidade que coreografava o seu próprio acontecimento.
Quando o show começou, o que se viu não foi apenas uma artista no palco, mas milhões de corpos em sincronia. Os leques batiam no ar como asas em disparada, gerando uma coreografia que não se ensaiou, mas que aconteceu. O som de milhares de pessoas batendo os leques em uníssono produziu um ritmo paralelo à música — uma trilha vibracional do pertencimento. Não havia mais quem performava e quem assistia. Tudo era dança. A areia, o suor, os olhos, as ruas, o vento. A dança ali não seguia passos, mas desejo. O desejo de estar junto. De fazer parte. De mover-se mesmo sem saber para onde.
E talvez seja isso que mais perturbe as formas tradicionais de se pensar espetáculo: quando o palco desaparece e o mundo dança em seu lugar. Gaga não ocupou o centro — ela explodiu suas bordas. E o que restou foi Copacabana como corpo expandido, Rio como organismo dançante, e o Brasil — ainda que por uma noite — se permitindo viver a leveza do improviso como política de existência.
Réveillon, Parada, Carnaval — e algo mais: Não foi só um público. Foi uma multidão que se reconhecia no espelho do outro. Copacabana, no dia 3 de maio, foi mais que cenário: foi uma convocação. Um ano depois do histórico show de Madonna, que já havia reunido 1,6 milhão de pessoas na mesma praia, Lady Gaga ultrapassou qualquer previsão e fez surgir ali 2,5 milhões de corpos pulsando juntos. Mas o que aumentou não foi apenas a estatística — foi a potência do acontecimento. Entre bandeiras arco-íris, leques coreografados pelo vento, brilhos nas peles e roupas que desafiavam normas, o que se formou foi uma cartografia de pertencimento que redesenhou o espaço público com afetos desviantes.
Copacabana se tornou, por algumas horas, uma síntese simbólica daquilo que o Brasil poderia ser: um lugar em que a diferença não só existe, mas dança. Era Réveillon pela promessa de um novo tempo com direito a fogos de artifício no final, era Parada LGBT+ pela afirmação de que corpos dissidentes existem e resistem, era Carnaval porque a transgressão era celebrada em forma de festa. Mas era também algo que escapava dessas molduras conhecidas. Um tempo fora do tempo. Uma bolha de presente expandido onde a liberdade parecia, finalmente, permitida — ao menos ali, ao menos naquele instante.
Milhões batiam seus leques como asas em sincronia. Era mais que coreografia, era um gesto coletivo de respiração. Um tipo de liberdade que se manifesta no corpo: no corpo que dança, que brilha, que se mostra. E ali, diante de uma artista que é ícone de tantas lutas e dissidências, o que se viu foi um país que, mesmo entre retrocessos, ainda sabe se reinventar pela festa. Porque há momentos em que a alegria é mais que celebração — é insubordinação política. E neste 3 de maio, cada olhar, cada beijo, cada corpo que ocupava o asfalto dizia: nós estamos aqui, e somos muitos. Mais do que já fomos. E não vamos recuar.
Cultura não é cereja — é motor: A cifra de R$ 600 milhões em impacto econômico não caiu do céu. Ela não foi milagre, nem capricho do mercado. Foi o resultado de uma engrenagem pensada, articulada e alimentada por políticas públicas que compreenderam que cultura não é o que se faz quando “sobra” — é o que se faz para fazer sobrar. Ainda há quem acredite que cultura seja o ornamento da máquina pública. Mas no dia 3 de maio, com Lady Gaga na praia de Copacabana, o Brasil deu uma aula de que cultura é, na verdade, motor. Lotou hotéis, disparou voos, girou o comércio formal e informal, gerou renda, emprego e projeção internacional.
Mas é preciso ir além do deslumbramento com o espetáculo. Sim, estamos falando de uma estrela global — uma das maiores do planeta. Mas a lição que esse evento deixa não é sobre a escala, e sim sobre a estrutura. O que se viu no Rio foi o efeito de um ecossistema cultural fortalecido: planejamento, investimento, articulação entre esferas de governo, acolhimento da diversidade, abertura do espaço público para o encontro e, acima de tudo, confiança no poder simbólico da arte. Isso não exige uma Gaga. Exige vontade política. E isso, sim, pode — e deve — ser feito em qualquer escala.
Cada estado, cada cidade, cada comunidade tem seus próprios artistas. Eles não estão nos holofotes de Copacabana, mas estão nos palcos improvisados das praças, dos centros culturais, dos becos. Eles também podem mobilizar públicos, gerar renda, ocupar o tempo e o território com arte, formar redes, ativar economias criativas locais. O que falta, quase sempre, não é talento: é estrutura, é investimento, é visibilidade. A cultura ensinada por Gaga é, sobretudo, uma cultura que entende que arte é ação pública, não ornamento. É política de base. E se o Brasil pôde ser o centro do mundo por uma noite, não foi apenas por causa dela — foi porque soube transformar arte em estratégia. Que isso sirva de espelho para os territórios que ainda hesitam. Porque cultura não é só o que encanta — é o que sustenta. E os municípios também podem acender esse motor.
Na noite de 3 de maio, o Brasil não apenas recebeu um show. Ele se viu dançar. Se permitiu ser corpo. Se reconheceu na festa como possibilidade de futuro. Copacabana foi chão e foi palco, foi rua e foi abrigo, foi carnaval, parada, réveillon e algo mais: foi território provisório de um país que, por algumas horas, ensaiou o que poderia ser se fizesse da arte uma prática de governo, e não apenas um entretenimento de luxo. Porque não se trata de repetir Gaga em cada cidade. Trata-se de entender o que ela revelou: que onde há corpo em movimento, há potência; que onde há gente se vendo, há política; e que onde há cultura viva, há economia, há vida, há esperança. E talvez seja isso o mais urgente que um show pode ensinar: não como espetáculo, mas como metáfora de um Brasil que, apesar de tudo, ainda pulsa.
Wenderson Godoi