Quando um artista morre, o corpo da cidade perde um pedaço de si

Ontem, o corpo da cidade ficou menor.
Com a morte de Antônio Amaro, o Tonin, não perdemos só um ator, um diretor, um escritor. Perdemos uma dobra da história. Um rastro vivo de um tempo em que fazer arte era também erguer cidade — no gesto, na palavra, no grito, na gargalhada debochada da Irmã Elisa, que atravessou tantas vezes o palco para nos lembrar que o riso também pode ser resistência, já diria nosso eterno Paulo Gustavo.
Trabalhei com Tonin, em um espetáculo do Grupo Ribalta, ele na direção, eu na preparação corporal e numa participação como ator e bailarino. Depois, nas Santinhas do Pau Oco, onde ele fez do palco seu altar e da cena uma travessura sagrada. Tonin era daqueles que davam corpo à ideia de que teatro se faz com tudo: com o que se tem, com o que falta, com o que se inventa.
Mas o que mais me marca é que Tonin era um forjador de afetos. De apelidos. Reinventava a gente como quem dá novos nomes ao mundo.
Para ele, eu era Coreldraw — porque era coreógrafo.
Maria Cloenes virou a Van Claude Van Damme.
Luciano virou Vendra — de Luciana Vendramine.
Othon, virou Othalina, depois Thalina, Thatá, até chegar em Boi Tatá — ou simplesmente Boi.
Marcelo virou Marcilia, depois Cecília, até virar Cecília Meirelles.
Marcos virou Marquety, depois Kety, até se tornar Katy Sandiego ou Sandy.
Fábio era Fabisleixa, depois Leixa, até virar Leixa-me-deixa.
Era assim: com ironia carinhosa, criava pequenas mitologias locais. Tonin transformava o cotidiano em enredo, e a gente, sem perceber, virava personagem de um teatro contínuo que só ele sabia costurar com tanta leveza e precisão.
Aprendi com Tonin sobre as culturas de matriz africana, sobre respeito e complexidade. Foi com ele que tive meu primeiro contato com um pai de santo — em uma pesquisa para um de seus espetáculos. Ele abria caminhos não só no palco, mas também na escuta, na escavação de sentidos. Com Tonin, arte era sempre travessia.
E agora, a morte dele escancara algo que temos silenciado: está indo embora uma geração. Os que começaram. Os que abriram caminhos para que a gente pudesse andar. José Lopes, Dona Zélia Olguin, Darci di Mônaco, Francismar Vasconcelos, Antônio Guarnieri, Pablo Cardoso. E agora, Tonin.

É urgente a memória.
Não como nostalgia — mas como política. É preciso lembrar quem veio antes para entender por que estamos aqui. E o que ainda temos que fazer. Memória não é enfeite: é ferramenta. Ipatinga já foi o segundo polo cultural de Minas Gerais — e não por acaso. Havia política pública estruturada, investimento contínuo, circulação de espetáculos, intercâmbios, festivais, formação. A cidade pulsava arte. Era referência. Tínhamos artistas sendo vistos, sendo ouvidos, sendo financiados com dignidade. Hoje, essa pulsação é mais fraca — não por falta de talento, mas por desinvestimento, por abandono e, muitas vezes, por um certo desinteresse social em olhar para dentro. Lembrar essa história é acender um alerta: sem política cultural viva, o que morre não é só o artista. É o horizonte.
Hoje, o que temos feito com nossos artistas? Quantos Tonins ainda temos e não estamos vendo? Quantas histórias estão sendo escritas agora mesmo e já estão sendo esquecidas? Quantos espetáculos locais deixamos de assistir porque não achamos “profissional o suficiente”? Quantos livros deixamos de comprar porque não têm capa brilhante nem editora famosa? Quantos nomes ignoramos porque achamos que só é bom o que vem de fora — como se o talento daqui não valesse o mesmo? Há um hábito cruel em desqualificar o que é nosso, como se a proximidade tornasse a arte menos potente. Mas é justamente o contrário: é a arte feita perto, com a língua da gente, com os cheiros e dores e risos da nossa rua, que nos funda como comunidade. Valorizar o artista local é insistir na ideia de que esta cidade tem futuro — e ele passa pela cultura que produz.
Valorizar a arte local não é caridade. É justiça. É retribuir o que recebemos. É entender que cultura é tecido que sustenta — e se a gente deixa de cuidar, a cidade esgarça. Curtir, comentar, compartilhar o que o artista local faz, ir às estreias, comprar o livro do vizinho que escreve, aplaudir o espetáculo da escola de teatro — tudo isso é mais que um gesto. É política cultural.
Tonin nos ensinou que o palco é lugar de memória viva. Que o corpo do ator guarda o riso, a raiva, o escracho e o afeto de uma cidade. Que a arte pode ser deboche e pode ser cura.
E agora, Tonin, que você partiu, fica a cena: a gente em silêncio, de pé, em respeito.
Mas só por um instante.
Porque o que você construiu é insistência, e a arte que você viveu não termina com a sua morte. Ela vira chão, vira rito, vira compromisso.
E nós, os que ficamos, seguimos — dançando, escrevendo, encenando…

Por Wenderson Godoi