AQUI: Corpo, Memória e Cinema como Insistência do Real

O cinema é memória. Dançar também. Em AQUI, videodança de Luciano Botelho, o corpo se inscreve como testemunha do tempo e da cidade. O que significa pertencer a um espaço atravessado pela história, por presenças que ainda sussurram entre o ferro das estruturas e as raízes das árvores? O corpo de Luciano percorre lugares que são, eles mesmos, documentos vivos. A Estação Memória Zeza Souto, o Pontilhão de Ferro, a Casa dos Ferroviários, o Parque Ipanema, o Teatro Zélia Olguin – todos esses espaços funcionam aqui não apenas como cenários, mas como camadas de memória sedimentada. O videodança se torna um processo arqueológico: Luciano não apenas ocupa esses espaços, mas os reativa.
Assim como Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e Maura e Robinson, de Nilmar Lage, AQUI insiste na necessidade de lembrar. Lembrar sempre, para nunca esquecer. Se o cinema pode ser um gesto de resistência política, o que significa dançar diante da ruína e da reconstrução? Ainda Estou Aqui narra a história de Eunice Paiva e sua luta para reconstruir sua vida após o desaparecimento de seu marido durante a ditadura militar. Já Maura e Robinson conta a história real de dois militantes políticos que sobreviveram à repressão e continuam a atuar em defesa dos direitos humanos. Em ambos os filmes, a memória dos desaparecidos e a luta por justiça estão no centro da narrativa.
Em AQUI, o corpo de Luciano também carrega presenças que já não estão, mas que nunca deixaram de ser. Sua mãe, já falecida, é evocada através de uma imagem no vídeo, transformando a dança em uma homenagem silenciosa e potente. Há também a história de uma mulher que morava atrás da Estação Memória e, ao se casar, levou o alimento da festa de casamento para os usuários que viviam na estação, um gesto de solidariedade que se inscreve na memória coletiva do local.

Luciano resgata em AQUI elementos do espetáculo ADEÓ, trazendo os conduites de obra como cenário que retorna, transformando-os em estetoscópio que, antes, evocava a escuta do chão e, agora, se desloca para ouvir a cidade. Seus gestos performam uma escuta ativa dos patrimônios, que são aqui compreendidos não apenas como bens tombados, mas como espaços de memória viva. Tanto na sua ação performática quanto no filme, Luciano transforma os significados dos lugares públicos onde realiza sua dança, indicando que esses significados se fazem e se refazem. Eles não são dados prontos, fixos ou independentes de seus usos e práticas, mas fluxos em constante movimento. Essa relação entre corpo e patrimônio não é nova em sua trajetória; pelo contrário, atravessa sua produção no Hibridus há anos, com trabalhos como Travessia, Corpo, Espaço, Cidade, Corpo Dissidente e experimentos em que seu corpo ocupava e ressignificava espaços urbanos, como quando se travestia no espaço público. AQUI segue esse percurso, expandindo ainda mais essa investigação sobre como a memória atravessa o corpo e vice-versa.
A trilha sonora de AQUI é assinada por Barulhista, artista sonoro que já colaborou com Luciano em …fora de todas as casas, de todas as lógicas e no próprio ADEÓ. Desta vez, a trilha incorpora a voz de Luciano, que enuncia um texto que é também cartografia e testemunho: “Aqui eu danço, aqui o mundo gira, aqui tem o som do trem, aqui eu recomeço, aqui ninguém quer saber de nada, aqui segue vivo…”. A palavra em sua voz se entrelaça ao movimento do corpo e à paisagem, tornando-se um dispositivo de escuta e inscrição no tempo. Mais do que um registro, AQUI se coloca como ato performático que atravessa a materialidade dos espaços e dos corpos, ressignificando o que significa estar e ser no mundo.

A parceria com Léo Coessens, responsável pela direção, captação e edição das imagens, potencializa essa investigação. A câmera não apenas observa o corpo em relação com os espaços, mas também desenha geografias sensíveis. O que acontece quando um corpo se coloca em escuta para o que já esteve ali? O que significa re-habitar lugares carregados de história?
O corpo como arquivo. O patrimônio como camadas de tempo. Se a cidade é atravessada por narrativas que tentam aprisioná-la em significados definitivos, AQUI nos lembra que a memória é insurgente, inquieta, sempre em processo. A Estação Memória Zeza Souto, o Pontilhão de Ferro, a Casa dos Ferroviários, o Parque Ipanema, o Teatro Zélia Olguin, todos esses espaços visitados por Luciano e Léo Coessens são mais do que lugares: são territórios de lembrança e disputa. Que patrimônios estamos autorizados a ocupar? Quem decide o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido? Se, como nos ensina Luciano, a dança é também um modo de escuta, então AQUI nos convoca a ouvir – e a transformar – o mundo ao nosso redor.

Wenderson Godoi