O que se viu na tribuna da Câmara de Ipatinga no último dia 20 de março, não foi um debate. Foi uma tentativa de interditar o campo. Um gesto de censura travestido de moral. Um corpo falando para silenciar outros corpos.
Durante a votação do Projeto de Lei 36 e 37, que trata do repasse de R$ 1.584.583,84 da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) para a cultura local, o vereador Matheus Braga escolheu um alvo: o Hibridus Ponto de Cultura. E performou o que se espera de quem tenta governar o campo cultural a partir da norma: cortar o que escapa. Apontar o que não deveria estar ali. Operar o medo.
Braga trouxe trechos de projetos anteriores, distorcidos, para sustentar sua narrativa. Invocou a sigla LGBTQIA+ como se fosse uma infração. Um vício. Um erro que precisa ser apagado da vida pública. O corpo que performa a diferença torna-se ameaça. E a política vira palco para o julgamento dos modos de existir.
Mas o que se votava não era o Hibridus. Era uma política pública nacional. Era a PNAB, construída por milhares de agentes culturais em todo o país, aprovada por unanimidade no Congresso, com critérios que priorizam quem sempre esteve fora: periferias, comunidades tradicionais, mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência.
O projeto do Hibridus aprovado na PNAB? Não fala de gênero. Não fala de sexualidade. Não fala de LGBT+. Fala de memória. De axé. De resistência. Trata-se da circulação do espetáculo ADEÓ, uma obra que dança a ancestralidade afro-brasileira. Mas não importa. Quando o corpo em cena é lido como desvio, qualquer gesto é ataque.
Máscaras – 2000 – foto: Jorginho Amaral
Votar contra a PNAB no município de Ipatinga é votar contra mais de 100 projetos aprovados. Contra oficinas em bairros. Contra festivais que movimentam a cidade. Contra quem acorda cedo para montar o palco, montar a luz, abrir a roda, criar sentido.
Esse episódio é só mais um quadro da mesma coreografia que se espalha pelo país. Vimos em Porto Alegre, com o ataque ao Queermuseu. No MAM-SP, com Wagner Schwartz com sua performance “La Bête”. Em BH, com os fantasmas que tentaram apagar Pedro Moraleida. Vimos em Ipatinga, quando fizeram um escarcéu com a palavra “gênero” e o Plano Municipal de Educação. Ou quando o prefeito Gustavo Nunes censurou o integrante do Hibridus Luciano Botelho por causa de um “boa noite a todes”em um evento do próprio Hibridus no Parque Ipanema. Na cena pública, a linguagem é coreografia política. Cada palavra escolhida desloca o que pode aparecer. Cada saudação incluída amplia o campo. Por isso incomoda. Porque ao dizer “todes”, se expande o mundo. E quem lucra com o mundo menor, grita.
O gesto do vereador não erra. Ensina. Ensina como se constrói o inimigo. Como se arma o palco para a exclusão posar de justiça. Não é descontrole — é método. Um método que repete. Escolhe o alvo. Edita a fala. Recorta o passado. Convoca a plateia. Treina o tom para parecer indignação, quando o que há é cálculo. O que se vê não é um corpo desgovernado, mas um corpo que sabe onde pisa. E pisa para apagar.
Há ali uma técnica. O conservadorismo é corpo que se ensaia. Ensaia o ataque como se fosse defesa. Ensaia o ódio como se fosse proteção da moral. Ensaia a exclusão como se fosse cuidado com o bem comum. E para isso, precisa da cena. Precisa da luz, da câmera, do microfone. Não basta excluir — é preciso parecer virtuoso enquanto exclui.
É nesse jogo que a visibilidade vira arma. A performance do ataque é construída para circular. Para render corte de vídeo, manchete, engajamento. O gesto conservador precisa do escândalo que ele mesmo fabrica. Alimenta-se do impacto que causa no que chama de “desvio”. É um teatro que exige antagonista. E o antagonista somos nós: corpos que desafiam a norma, que inventam linguagem, que ocupam a cena.
Da Carne ao Corte – 2015 – foto: EsthelaR
O que se diz na tribuna não fica na tribuna. É ação que produz consequência. Efeito de linguagem que tenta interditar o campo. Discurso que performa exclusão e quer ser visto. Porque quem nos ataca, quer audiência. E é da nossa visibilidade que tenta se nutrir.
Por isso, não compartilhe o vídeo. Não dê palco ao que só existe porque encontra plateia. Não transforme violência em tráfego. Cada clique é um aplauso invertido. Um rastro de atenção que retroalimenta a máquina. O ataque quer ser visto. Quer virar corte. Quer circular como se fosse centro. E quanto mais circula, mais se fixa. Mais se naturaliza. Mais ganha força.
Denunciar não é divulgar. É preciso romper o ciclo. Há diferença entre visibilizar a violência e projetar o violento. Entre gritar contra e amplificar o grito de quem quer nos silenciar. Denunciar é gesto. E como todo gesto, é escolha de corpo. Que corpo colocamos em cena? O nosso ou o deles? A nossa travessia ou o corte que nos fere?
A cultura não é vitrine. Não quer aplauso fácil. É corpo coletivo em movimento. É travessia. É fricção. É presença que teima em existir mesmo quando querem apagar. É zona de contato, não de concessão. É onde a vida passa, se reimagina e se reinventa.
E tem mais: a cultura também é conta. É número. É dado concreto. É economia que gira. É política pública que alimenta. Para cada R$ 1 investido, R$ 1,59 retorna à sociedade (IBGE). Com a Lei Paulo Gustavo, o retorno foi de R$ 6,51. Cultura é investimento com alma, mas também com planilha. É renda. É emprego. É dignidade. É o corpo inteiro da cidade respirando junto.
E mais: cultura é o direito de estar. De existir. De se mover.
Seguimos dançando.
Seguimos criando.
Seguimos em cena.
Seguimos com todes.
Wenderson Godoi
Hibridus Ponto de Cultura